Nunca pensei que houvesse tanta dificuldade em escrever, em dizer algo que pudesse valer a pena, que pudesse ser guardado para o sempre da história. Penso na linguagem como uma velha locomotiva, os acontecimentos passando céleres, feito ventos de tempestade, e as palavras, abismadas, regurgitando avalanches de sílabas que não poderão ser aproveitadas.
Não, de há muito eclipsou-se o espaço e o tempo da crônica tranquila, leve, a escrita contemplativa da cidade num final de tarde, a crônica poética da vigília madrugadora, a crônica travessa do amanhecer de sábado, pleno de sol, com o vendedor de camarões palmilhando a rua com sua voz de barítono: “Camarou, camarou, camarou”!
Não há amanhecer tranquilo, não há fim de tarde, não há noite nem madrugada, senão o perpétuo longo dia cerzido na crueldade dos acontecimentos. Não há crônica, senão a escrita apressada de palavras a esmo, o carro que esmaga o corpo fatigado do trabalho, a foice que desmantela crânios, a asa do avião esgrimindo com o oceano, decapitações, decapitações, essa palavra tão grande e tão sangrenta, enchendo dias e dias com a dura verdade dos seus acontecimentos.
A infância de todos os dias perdida num átimo de tempo para o estampido, o ódio, todo travestido em sorrisos e em bater de panelas, o cinza nos muros da cidade quatrocentona, os protetores do mal com seus novos muros na prancha dos arquitetos, que há que se impor a lei e a censura, a ordem e o progresso, as grades, as tornozeleiras, os carimbos para a liberdade dos donos da propriedade, tão poucos, tão ínfimos, cabendo todos num parágrafo de crônica, nos dedos de uma mão aberta.
“Perdeu, perdeu”, berra o assaltante, enquanto engatilha a arma e atira. “perdeu, perdeu”, digo eu às palavras da minha crônica, chegando atrasadas, caindo feito moscas mortas na tela do computador, virando cristais de gelo na página impressa, enquanto o mundo brame, estruge e prepara crueldades novas no seu caldeirão infernal.
Há repasto para todas as formas de noticiar o mal. Mas já não há o que dizer, senão correr para preparar o reality show das tragédias do dia.
Cada cidade, em cada dia, preparando a sua própria tragédia, que engrossa o menu mundial. Imagens macabras, sucedendo-se umas às outras, como num vídeo preparado pelo facebook.
A repórter regurgita o noticiário, em frases curtas, arrematando tudo com um sorriso pronto, não vá perder seu posto, não vá ter que assinar seu pedido de demissão voluntária.
Já não escrevo o que pede a minha vontade. Apenas, com um jeito de mão, tento dar ordem aos acontecimentos, em atropelo, cada um querendo ocupar a linha de frente da locomotiva da tragédia. Não há mais lugar para a crônica, senão a irrupção de palavras soltas, rabiscadas à pressa, escrita telegráfica e desgovernada, cumprindo num ritmo alucinado a sina dos nossos dias.
Este post foi publicado hoje em minha coluna impressa do #JornalAUniao