Fabrício Queiroz: Um Cidadão de Bem

 

(Este post foi publicado na última sexta-feira, em minha coluna impressa do Jornal A União)

 

Assisti a íntegra da entrevista de Fabrício Queiroz à jornalista Débora Bergamasco no SBT. O ambiente era protegido. Não houve perguntas incômodas, ao contrário, havia o intuito de que ele se explicasse, pudesse contar a sua história plausível, e assim viesse a aplacar o enorme ruído em torno das suas operações financeiras descobertas pelo COAF.

Ao longo da entrevista, Queiroz foi desenhando em largos traços o seu perfil. Pai, marido, cumpridor dos seus deveres. Trabalhador contumaz, deu sangue e suor para a campanha ao senado do seu empregador, Flávio Bolsonaro. Alcançada a vitória, era hora de pensar em si mesmo.

Com um sorriso no rosto, Queiroz revelou os flagelos que enfrenta. Uma bursite no ombro, um pouco de sangue nas fezes, e, no dia mesmo em que deveria atender à quarta intimação do Ministério Público, a notícia de que tem um câncer no intestino, um tumor grande que precisa ser extirpado.

Não, Fabrício não usou essa palavra extirpado. Ele até se atrapalhou na hora em que revelou que havia feito uma biópsia. Queiroz fala de maneira simples, abusa dos rs, insiste no vício de que ele é o “pobrema”, na tentativa de afastar a família Bolsonaro das investigações do Coaf e do barulho da imprensa.

“Um cidadão de bem”, “um sujeito bacana”, “querido, muito querido”, e para provar, declara à jornalista que recebeu mensagens solidárias de dez, doze parlamentares da Alerj.

O tempo todo Fabrício usou uma tática que parece lhe ser habitual: Fabrício revelou coisas e omitiu outras, sempre com o mesmo sorriso e a certeza de que estava num lugar protegido. Com naturalidade, disse que só falaria sobre as movimentações da sua conta bancária no Ministério Público. Escondeu o sobrenome do seu médico, assim como o hospital onde esteve internado para exames invasivos.

Deu detalhes muitos sobre a sua doença. Falou do estado das suas fezes, riu ao descrever o exame de toque, o primeiro que fez na vida, segundo declarou. Até aproveitou para mandar um recado às filhas: “Papai tá bem, papai vai ser operado, mas tá bem”.

Uma história plausível? Eu diria que há na sua narrativa, um esforço canhestro de edição. Um jeito mal arrumado de dizer as coisas, colocando fatos díspares em cima de fatos díspares. Engenharia doméstica para forjar a sua casca de cidadão de bem, homem trabalhador, um sujeito que sabe “fazer dinheiro”.

A narrativa de Queiroz oscila entre uma esperança e o risco completo. Esperança em que o jornalismo declaratório e factual empacote sua história como verídica. Esperança de que o MP estadual, aliado ao Ministério da Justiça, endosse e dê plausibilidade ao seu discurso.

O risco vem do lado da possibilidade de um jornalismo investigativo prosseguir escavando as lacunas da sua história. Um jornalismo investigativo que queira insistir em perguntas incômodas, provas e contraprovas, um jornalismo ocupado em perseguir os rastros do dinheiro do Queiroz, isto sim, poderá ser um grande risco para a ruína da sua narrativa.

 

Ceia de Natal

 

Vivemos esses últimos dias feito sonâmbulos, arrancando sonhos às braçadas, do imenso caldeirão do consumo. Frenéticos, agarramos vestidos, sapatos, vinhos, maquiagens, longas argolas douradas e prateadas, celulares, muitos celulares, porta-retratos, velas perfumadas, um papai Noel esgoelado, à espera das pilhas, pacotes de viagens, pinheiros artificiais, grandes potes de sorvetes.

Somos um só e único bicho coleante, olhares esgazeados, risos descontrolados, mãos atarefadas, puxando, rasgando, segurando, apertando.

Siderados, contemplamos nossas mercadorias, enquanto os bips das máquinas registradoras e o ciciar plástico dos empacotadores abafam os guinchos do mundo.

Braços carregados de sacolas, seguramos com zelo os sonhos que pudemos arrancar do grande caldeirão do consumo. Outros são arrastados ciosamente pelos entregadores: móveis, carros, barcos, jatos novinhos deixados nos hangares feito pássaros inertes e brilhantes.

Compramos sonhos aos bocados, como se pudéssemos matar a sede, o vazio, o aperto no peito que nos tomam de assalto, enquanto o mundo real quebra os ossos da vida, esfarela possibilidades, cozinha suas litanias em fogo alto.

É assim todo fim de ano. Mergulhamos no imenso e viscoso mundo da publicidade, reféns das nossas antigas crenças, feito baratas tenazes, passeando na sopa fria da coalhada árabe. Imersos nesse mundo, com mãos ávidas, rompemos filas, ajuntamentos, para agarrarmos o que for possível. As canções, a profusão das luzes e enfeites, como que nos ajudam a vestir a fantasia dos frenéticos, dos sonhadores, enquanto que nosso peito rufa inutilmente seus vazios, sua espécie de fome, que nos encaminha de imediato ao mac donalds.

Poucas horas para a ceia, a missa do galo, mas nós continuamos nosso périplo, braços carregados de sonhos, as máquinas registradoras quase gritando para abafar a realidade que se prepara, a golpes de martelo, a carimbos ritmados, a tiros, gritos, papelotes e pedras.

– Feliz natal, dizemos com a boca cheia de peru, as mãos estendidas para a taça de vinho, olhos fitos no panetone trufado, à espera do primeiro corte.

– Feliz natal, dizemos todos com a boca cheia dos sonhos que pudemos arrancar do grande caldeirão do consumo, nossa pele vestida de sonhos, nossos pés trauteando a cantiga do sapato novo, nossos brincos grandes girando e brilhando debaixo das luzes da árvore de natal.

Batemos com os talheres nos pratos, cantamos ou falamos mais alto do que de costume, rasgamos papéis coloridos para esventrar os sonhos comprados no bazar.

Tudo para ocultar um mundo que brame e freme, um mundo que fere, corta, e cerze com o agulhão da maldade, as dores novas, por cima das dores velhas.

– Feliz natal, gritamos em coro, enquanto o mundo real estruge em gargalhada cínica, o grande ricto de maldade a selar os últimos atos, as últimas ordens, o pesado molho de chaves a trautear nas mãos infames, as últimas sílabas da sela fechada, o último gesto para o primeiro minuto da danação.