Caso Cláudia: Sintomas de uma Guerra Desigual

O não ver as vezes é pior. É pior, porque dentro de si existe um censo de visão, um censo de visão que aponta, imagina, forja um sem-número de imagens dentro da sua cabeça.

Na televisão, por toda a semana passada,  o que mais se ouviu foi: “imagens fortes, feitas por um vídeo amador”… E em minha cabeça, com a prontidão de um fotógrafo desvairado, meu senso de visão ia forjando suas próprias imagens sobre o caso.

A mulher, em agonia, sendo colocada no porta-malas do carro.  A batida forte, provavelmente imprensando um braço, quem sabe parte da cabeça?

O porta-malas aberto, a mulher entregando à rua pedaços da sua pele já martirizada, morrendo aos sopapos, entre os guinchos dos ônibus, as sirenes da polícia, os cheiros de pão e carne assada dos restaurantes por onde passava o cortejo improvisado.

Tento fugir dessa crônica surda, dessa sinfonia urbana macabra, evado-me dessa confusão, e vou buscar apoios para pensar esse desassossego, as razões e o princípio dessa guerra, porque se trata de uma guerra, uma guerra longa entre os processos de urbanização e as pessoas pobres, uma guerra desigual entre o estado, os traficantes e os pobres do Rio de Janeiro, as maiores vítimas dessa longa tragédia.

Cláudia Ferreira da Silva, 38 anos, oito entre sobrinhos e filhos sob sua responsabilidade de mãe. O caso só se tornou notícia por causa do vídeo amador. Gente anônima filmando o terrível e último passeio da mulher. Não fosse o vídeo amador, o caso seria enterrado com os despojos lacerados da vítima.

A assinatura do crime tem a marca dos “cavalos corredores” do Nono BPM. Sob a pecha de alcançarem a paz, entram nas favelas correndo e atirando. Quanta tolice afirmar que Cláudia foi vítima de uma bala perdida! Bala certeira, expulsa do coldre com endereço certo: Pobres, negros, viventes dos morros, entrincheirados nas favelas, entre o tráfico e as leis de guerra da Segurança Pública.

Leio as notas do jornalismo informativo, engulo em seco, vou atrás dos rastros antigos dessa história sangrenta. Vou atrás dos teóricos que pensam sobre as razões fundamentais dos fenômenos.

Encontro Robert Park, admirado pela invenção das cidades, que a seu ver, são “ a tentativa mais bem-sucedida do homem de refazer o mundo em que vive mais de acordo com os desejos do seu coração”. Na esteira de Park, encontro a crítica aguda de David Harvey aos duros processos de urbanização que empurraram os mais pobres para os grotões, às áreas mais desvantajosas, em favor de projetos capitalistas de exacerbada exploração imobiliária. ”Gente Humilde”, que só tem valor como mão de obra, exército de reserva, massa de manobra no dia da eleição. Gente imprensada entre o tráfego e as políticas de segurança, povo desvalorizado  por séculos e séculos de um modelo de urbanização calcado no lucro dos mais ricos.

                Tragam suas câmeras, que eu, na minha sanha de imaginar, vejo o tamanho da desigualdade dessa guerra. Gente pobre, armando barricadas com suas velharias, gente humilde, sendo açoitada pelo vigor e a capacidade da artilharia dos pelotões de choque, ou refém da linha de tiro dos traficantes.

Um E-mail para Sygmunt Bauman

Caro Bauman, este e-mail é uma brincadeira que faço com os leitores do meu blog, mas, uma brincadeira muito séria. Nele eu falo de uma caçada. Uma caçada que promete demorar, e que já dura semanas. A caça, não se sabe direito quem ela é, já se sabe porém, que surpreende o mundo, por haver despistado o maior aparato da sociedade pós-industrial, ou seja, aquilo a que o senhor chama de “vigilância líquida”.

Já sabe que falo acerca do Boeing 777 da companhia Malaysia Airlines e do seu inquietante desaparecimento.

Se tiver sido um roubo, eu diria que é ainda mais engenhoso do que o assalto ao trem pagador, e note que a façanha nem pode mais ser atribuída a Bigs. Se for um atentado terrorista, é menos sangrento que o 11 de setembro, mas é talvez mais intrigante que aquele terrível episódio das torres gêmeas.

A caçada envolve números e aparatos respeitáveis. A área de floresta geográfico-cibernética é tão vasta que cobre cerca de vinte países. Os aparatos tecnológicos fariam inveja à maior matilha de cães de caça: Satélites, sistemas de vigilância, todos os drones já inventados.

Concordo consigo. Vivemos numa sociedade tecnológica, na qual o privado morreu, asfixiado por essa ganância dos mais de duzentos milhões de internautas, que alimentam e retroalimentam, segundo a segundo, o fenômeno da publicização das suas vidas individuais.

A nova engenharia das comunicações organiza-se para um salto de eficiência no que toca ao monitoramento desse oceano informacional, new cibergarimpo de onde se extraem as pepitas de ouro e diamante que alimentam a vigilância política, de mercado, das guerras por patentes e tantas outras vigilâncias autorizadas por sociedades fascinadas pela técnica.

O desaparecimento do Boeing porém, coloca no centro da mesa um ato de esperteza (ou diremos inteligência)? Coloca na mesa, uma força-tarefa de contra-engenharia, capaz de burlar todo esse aparato, capaz de silenciar sofisticados equipamentos de fluxo informativo, capaz de esconder-se desse novo “panópticum” global empenhado na sua caçada.

Assange,Edward Dawson,o que nos dirão?

E nós próprios, enquanto postamos fatias das nossas vidas privadas no Facebook, no Twitter, enquanto nos maravilhamos com a panóplia de aplicativos para que o nosso micromundo possa ser editado e distribuído globalmente na sua melhor versão, será que temos ciência do quanto estamos vulneráveis e desprotegidos nessa imensa floresta cibernética?

Senhor Bauman, não resisto a mais uma brincadeira, para amenizar a minha perplexidade: Na fábula pós-moderna, me parece, Chapeuzinho vermelho, vovó e Lobo Mau estão unidos. Os caçadores, estes, estão cansados, e perderam as chaves da casa. Nós, indiferentes ao tropel da guerra entre engenharia e contra-engenharia,damos livre curso ao à nossa narrativa cibernética do presente.

Anônimos do Mundo

Chegam de todos os cantos, como num aluvião. Portas e janelas fechadas, travas e correntes, nada disso importa. Invadem a sala,  espalham-se pelos quartos, derramam-se pela varanda e cozinha.

Do mar da Malásia, num átimo de segundo, tão rápido quanto a velocidade da luz, invadem minha noite com sua estranha perplexidade, suas lágrimas, sua angústia, que agora se apossa do meu coração, feito pequeno minifúndio atravancado por essas dores alheias.

São como duendes feitos de vento, feitos de nada, onipresentes em todos os cantos da casa, crianças pequenas, jovens, homens de negócios, senhoras piedosas, todos pedindo à meia voz, nessa balbúrdia sussurrada, que eu lhes invente vozes, que recrie os seus diálogos prosaicos, antes da tragédia. Soluçam pelos trajes da minha invenção, seus perfumes prediletos, que eu adivinhe o cardápio, os sonhos desfeitos, os telegramas por enviar, suas compras, suas compras no grande mercado chinês.

Tento escutar o mar da Malásia, ‘todo comprimido aqui dentro, bramindo, envolvendo, engolfando, escondendo.

Não posso mais com o peso dessas ondas revoltas, tanto sal, tanta saudade alheia, enredada nos meus cabelos. Não posso mais com essas lágrimas, essas perguntas, essa procura, essa escavação de silêncios.

Anônimos do mundo, que nem sabem das preces em minha língua, pedindo com estranha sofreguidão, que eu lhes decifre essas horas mortas, feitas de espera, em abandono de lemes e protocolos.

Tanto peso, tantas mãos erguidas, tantos olhos esbugalhados, e eu já não posso mais segurar tanta angústia represada, tantos dias amanhecidos, pesados sobre a minha noite.

Lábios cerrados, não venham esses hóspedes noctívagos sentirem o hálito da morte.  Mãos abertas para o desamparo, que eu só tenho essa crônica toda tecida com as palhas da incerteza.

Quero dormir, quero fechar a porta do meu quarto, cerrar a tranca desse aluvião, resvalar para dentro de outro sonho, um sonho só meu, feito de silêncio, feito apenas dessa casa, despovoada  de todos esses anônimos do mundo, e seus pesares, e suas ganâncias em arrancar das minhas mãos vazias, as listas, os anúncios, as notas fúnebres, as flores que não pediram nem querem receber agora.

Quero fugir da lisura desse mar gelado, com sua mentira de água e sal, espremendo entre suas ondas, o futuro que não virá.

Rumo ao Futuro

Nesse carnaval, aproveitei para me abstrair da folia, do agito, do samba. Fiquei em casa fazendo coisas triviais, sem a pressa dos dias normais de trabalho, sem o piloto automático, maravilhada pelo silêncio da minha rua, somente quebrado pelo canto dos pássaros, nas árvores vizinhas.

No domingo, escutei o barulho de uma máquina de carpintaria, numa rua próxima, e compreendi que outra pessoa, como eu, se abstraía do bulício do carnaval, trabalhando.

No History,  assisti a uma aula de futurologia, para comprovar que o mundo caminha célere para o que previu a muito tempo a ficção científica: o reinado da inteligência artificial e da robótica.

Sim, passos significativos estão sendo dados, para a gestação de uma outra raça. Os seres artificiais. Eles ainda são uma novidade, mas já povoam laboratórios, clínicas médicas, hospitais, cozinhas, estádios de futebol.

Não se admirem se nos próximos dez anos venderem-se ingressos para jogos de futebol entre humanos e robôs. A inteligência artificial vai mais longe. Por artes da holografia, se prevê que em 2022 você compre um ingresso aqui no Brasil e vá ao estádio da sua cidade, assistir em tempo real ao jogo de França e Inglaterra que acontece na Itália. Um espetáculo em que você terá a dimensão do campo, o tamanho da torcida, seus cheiros, sua algazarra, multiplicada por milhares de torcidas, nos quatro cantos do mundo.

O carnaval, nos próximos dez anos, também mudará muito. Haverá desfiles para robôs, e do mesmo modo, os ingressos do desfile mais caro do mundo, do Rio de Janeiro, serão vendidos para uma  exibição holográfica em qualquer cidade do mundo que a queira  comprar.

Será um progresso sem precedentes no modo como trabalhamos, como nos divertimos, como nos comunicamos. Se hoje vivemos a fase de transferência das nossas vidas para o espaço virtual, o tempo da consolidação da inteligência artificial e da robótica nos permitirá transferir a maior parte das rotinas do trabalho humano para as nanomáquinas.

No History, o apresentador diz que ainda não foi possível reproduzir a inteligência humana, as habilidades e agilidades do nosso cérebro. Em pouco tempo porém, esse pequeno desafio será ultrapassado. As máquinas nos libertarão do trabalho, com muito mais eficiência e muito menor desgaste de energia.

Vitória da inteligência artificial, mas  uma pergunta soturna empana o brilho da festa: E a inteligência humana? O que se fará dela? Apurou-se para 2013, que 41 por cento da riqueza mundial está concentrada nas mãos de 0,7 por cento da população. Desemprego, pobreza, milhões e milhões de pessoas no mundo ainda estão submetidas a condições de vida que refletem uma profunda desigualdade. O progresso, a largos passos, instaura a era da inteligência artificial,  sob a égide de um paradigma que privilegia a técnica e descarta o humano.

(Este post foi publicado hoje nna versão impressa do Jornal A União)