“Vai que é Tua,, Dilma”!

Quem se lembra da partida contra a Alemanha, aquele pesadelo incompreensível e demolidor? Nos últimos tempos, fico com a impressão de que Os primeiros jogadores deixaram o campo, mas foram substituídos, e a partida vive seu terceiro tempo interminável.

Não que estejamos jogando contra a Alemanha. Penso que constituiu-se uma estranha configuração, na qual o Brasil joga contra o Brasil. De um lado da trave, está o governo petista, com seu principal jogador, a presidente Dilma. Do outro lado, joga a mídia hegemônica, comercial e conservadora, o maior e mais bem estruturado partido de oposição do país.

A jogada de Dilma é simples: Andar entre o maior congresso conservador já eleito, tentando se livrar dos seus achaques, dos seus modos de obstrução, das pedradas vindas da minoria opositora, e, missão quase impossível, aparar os petardos advindos daqueles que se dizem governistas, mas, colocam-se na posição mais estranha, auxiliando a base adversária.

Do outro lado, estrutura-se a jogada mais simples, e também a mais engenhosa. Torcer contra. Desqualificar cada passo dado, pregar o pessimismo absoluto, orquestrar o #VemPrarua, abrir seus microfones para os pequenos bolsões de panelaços, inflacionar números de manifestações, nocautear o país, segundo a segundo, não somente no horário nobre, mas em toda a programação midiática, pondo a serviço dessa jogada, os seus ancoras mais influentes.

Apupos, vaias, chacotas, o cenário é mesmo típico das grandes partidas, em que grandes adversários batalham. Solitária, a presidente avança, recua, bate portas, se cala, grita. A mídia implacável não arreda o pé da sua torcida contra.

Mas parece que agora, em seu tempo regulamentar, a presidente fez o seu gol. Arrimada ao seu bordão, “Pátria Educadora”, Dilma trouxe para a pasta uma pessoa que pensa. Pessoas que pensam hoje são raridade, num país de discurso hegemônico, em que o contraditório não tem visibilidade alguma.

Renato Janine Ribeiro pensa com independência, com o substrato da filosofia, da ética, do desassombro de dizer sobre a contemporaneidade.

Sabe que o que o país vive hoje, não é uma partida de sete a um, iniciada com os governos petistas. Fosse a corrupção uma endemia do petismo, a sua cura seria mais fácil. A corrupção é uma endemia antiga, costurada no âmago da política, no cerne das instituições, espalhada pelos diversos interstícios da sociedade.

Por isso dói tanto. Por isso o remédio não pode ser esse paliativo de colocar supostos corruptos petistas na cadeia e pronto.

Não existe o pronto. Existe uma sociedade corroída, que ainda não está apta a olhar para o tamanho da sua tragédia e parece embarcar na estratégia do “quanto pior melhor”, gritando em coro “Dilma pede pra sair”, sem sequer prever o que virá depois.

E já ao final do post, ouso mesmo dizer que Janine é o segundo gol. O primeiro, mal armado, um chute de muito longe da trave, o primeiro gol feito por Dilma é o de escancarar os processos de corrupção do seu país. O segundo gol, emplacando Janine na pasta, certamente não contará com o bordão de Galvão Bueno, “vai que é tua, Dilma!

“Dilma, Pede pra Sair”!

Virou moda, hit nacional, même viral na internet. Em espetáculos públicos, acaba fazendo parte do grito de comemoração, a exemplo do que ocorreu   na noite do último sábado, quando o lutador de UFC Gilbert “Durinho”,bastante machucado, comemorou sua vitória com um grito de guerra inusitado: “Dilma, pede pra sair!”

O grito era uma espécie de eco, de reverberação do que ocorrera no dia 15 de março, quando em microfones abertos, a presidente do país foi achincalhada, vaiada, desrespeitada flagrantemente, em desaforos virulentos que não eram apenas verbalizados, mas expostos em cartazes e faixas.

O sucesso de xingar a presidente já tinha feito sua estreia na abertura da Copa do Mundo. Na atualidade, para além das redes sociais, tem   ocupado inúmeros espaços, e ganha adeptos sempre que haja um microfone, um espetáculo, uma forma de ser naturalmente publicizado.

A verdade é que esses ataques gratuitos, aparentemente espontâneos, refletem o clima belicista que perdura no país, o qual intensificou-se na última campanha eleitoral e não dá sinais de que possa ter uma trégua.

A cobertura da mídia, tematizando e enquadrando os acontecimentos, cuidando do processo seletivo de ir soltando aos poucos, mas sistematicamente, pequenas pílulas de informações, as quais desqualificam e incriminam o governo da presidente Dilma, são o adubo natural para essas manifestações de ódio, de ataque à principal figura política do país.

Se entretanto olharmos para o âmago da sociedade, veremos que na cultura atual, manifestações de intolerância, de desrespeito, têm demarcado as relações, de tal sorte que uma simples briga em um sinal de trânsito, ou mesmo uma contenda entre vizinhos, pode descambar num crime fatal.

A sociedade atual, em muitos dos seus extratos, é intolerante, impaciente, e, esquece-se com muita facilidade de praticar o respeito, as regras de convivialidade e boa vizinhança.

O país avançou nos seus processos de distribuição de renda, apresenta índices de redução da pobreza extrema, mas, vive um assustador vazio no que diz respeito à educação dos seus cidadãos.

A figura da mulher, da presidente da República, símbolos que naturalmente deveriam infundir respeito, não têm tido força suficiente para impedirem a avalanche dos impropérios que Dilma Rousseff vem recebendo, em microfone aberto, e, sob o silêncio de uma mídia que apenas divulga e não parece   minimamente preocupada em repelir os insultos, as chacotas, os desaforos virulentos.

A pressão das panelas parece estar pelas tampas. Encurralada, vivendo a solidão de defender, quase que em batalha solo, a democracia e a liberdade de expressão, Dilma Rousseff parece ser a maior vítima dos apupos de uma sociedade achacada pela impaciência e pela intolerância. Até quando?

 

(Este post será publicado amanhã na minha coluna impressa do Jornal a União)

As Dez Horas de Festim na Ilha do Descalébrio

Por esses dias, estive toda entregue aos processos que sacodem o país, reviram seus valores, amortalham suas crenças. Participei da manifestação do dia 13, convicta do duro sermão crítico que o governo da presidente Dilma Rousseff precisa ouvir, mas ciente de que havemos que juntar nossas forças, a fim de que o pequeno passo dado não venha a ser desviado.

No dia 15, fiquei em casa, mas com toda dor, perplexidade e desalento que o gesto exigiu, mergulhei até o fundo das manifestações, fosse por via das redes sociais, fosse por via da transmissão ininterrupta da Globo News.

O espetáculo era de horror e tinha a natureza da antropofagia. Uma espécie de festim macabro, onde, em sacrifício, pedia-se um partido político, e, na bandeja de prata, Salomé, seios à mostra, exigia a cabeça da presidente.

Em desvario, jovens, crianças, idosos, em trajes de torcida organizada, agitaram bandeiras, desfolharam, aos gritos e gestos largos, a profusão das suas demandas, tão contraditórias entre si, que não caberiam senão numa terra sem lei, um lugar fictício, que por falta de nome, eu poderia batizar de ilha do descalébrio.

O movimento por um Brasil livre, pacífico, segundo toda a cobertura de imprensa, só contou com um incidente grave, um único incidente a atrapalhar a oferta das rosas aos policiais da PM. No meio da multidão, um grupo de “carecas suburbanos”, que quis participar do banquete, foi detido pela polícia, curiosamente, sem oferecer qualquer reação de protesto ou de defesa.

Dez horas monumentais de desvario, e um recado claro. Há um fosso profundo entre o discurso e a ação política, um pavoroso divórcio litigioso que suprimiu a ética, a sobriedade e a sensatez, em favor do triunfo da ignorância, do egoísmo, do desrespeito flagrante ao estado institucional da legalidade e suas autoridades.

Há mais, porém. Um inquietante vazio, onde deveria haver os líderes, o conjunto de princípios, a força inquebrantável de uma verdade compartilhada, a qual pudesse de fato permitir um avanço real, rumo a um país livre.

Não nos enganemos, nós também temos parte nesse festim. Nós também ajudamos, em alguma medida, a fundar essa terrível ilha do descalébrio. Nossas omissões, nossos silêncios, nossas horas de ócio em nossas zonas de conforto, o zelo por nossas corporações, tanta coisa mais, foi cavando esse fosso, criando esse vazio, abrindo de par em par as comportas dessa orgia.

Sei que há muitos sorrisos cínicos a circular, muito esfregar de mãos, muitas teses apressadas, com a chancela da imprensa oficial, acerca do “fim do Brasil”. eu estou desolada e perplexa, com o tamanho dessa ilha e do seu descalabro.

 

 

Minha Crônica para Asafe e Outras Hashtags da Desesperança

Nome, Asafe William Costa Ibrahim. Idade, nove anos. Moradia, Baixada Santista, Rio de Janeiro. Estado atual, assassinado por uma bala perdida. Quando, fevereiro de 2015.

Quando chegou lá, no seu novo infantário, Asafe já sabia que brincariam com seu nome. a atendente que o recebeu, sorriu para o menino e indagou: – Qual a origem desse nome? O garoto de sorriso alegre e olhar franco não se fez de rogado. – A origem do meu nome é uma mistura de um grande erro e uma grande verdade.

A fila crescia, avolumava-se o quantitativo dos papéis na mesa da atendente, mas ela prosseguiu: – como assim?

– O tamanho do nome, foi o primeiro erro da minha mãe. Mas esse nome grande e esquisito escondia os seus sonhos. Que eu fosse doutor, jogador de futebol, esse era o segundo sonho dela, mas era o meu primeiro. Tá aí, um nome grande, um montão de sonhos, e uma vida curta.

A atendente sempre se assustava com a maturidade repentina que acometia aqueles meninos e meninas ali chegados. Prosseguiu seu trabalho, enquanto Asafe corria ao vestiário, para envergar os primeiros trajes da sua nova condição, acabado de morrer.

Nome, Larissa de Carvalho. Idade, quatro anos. Moradia, Zona Oeste do Rio de Janeiro. Estado atual, assassinada por uma bala perdida.

Quando, fevereiro de 2015.

Nome, Josias Searles. Idade, 15 anos. Moradia, Nilópolis, Rio de Janeiro. Estado atual, morto por chacina. Quando, setembro de 2012.

A atendente deu um suspiro de alívio quando tocou a sineta de intervalo para o almoço. Pousou sobre a bancada, seu crachá de identificação: Zona geográfica, américa Latina. País de atuação, Brasil.

Pensou que com tanto trabalho a fazer, não havia tempo para descanso. Pensava com amargura, que tomava conta de um infantário sem tréguas de um país que é o quarto no mundo no ranking de mortes violentas de crianças e adolescentes.

Um pequeno arrepio percorreu seu corpo de matéria fluida. Pensou na leva de meninas-bomba vindas da Nigéria, nos meninos e meninas advindos da África, de tantas outras crianças do mundo todo, mortas no seio das suas famílias, dentro de carros de luxo, dentro das escolas…

Empurrou para longe o prato do almoço, pensando que hoje quem trabalha é a morte. E se trabalha tanto, a morte, hoje, não haverá amanhã. Não haverá futuro, senão o eco assombroso desse terrível infanticídio.

Pensou mais uma vez em Asafe William Costa Ibrahim, brincou com as sílabas daquele seu nome grande e estranho e soube que ele era o último da espécie, que No Brasil, no Rio de Janeiro, a lista das chamadas de Asafe haviam se esgotado.