Passagem para Solidão

 

Deu no Estadão do domingo. Edilson de Souza, 33 anos, se prepara para deixar São Paulo e regressar a Flores, pequena cidade do interior de Pernambuco. Maurício Barbosa da silva também volta para o Piauí, onde vai trabalhar por conta própria no município de Santana. Solon de Lima voltará para o Crato, com toda a família. Aparecido fernandes de Souza volta para Salgueiro , interior de Pernambuco.

O mantra geral é a crise econômica, que desacelerou a construção civil, os postos de trabalho no comércio, assim como nas indústrias automobilísticas.

A leva de pessoas retornando ao nordeste me faz correr ao meu ebook, para rever o magistral livro do saudoso amigo Geraldo Maciel, “Aqui as Noites são mais Longas”, onde ele narra a saga de milhares, senão milhões de nordestinos, os chamados “cabeças-chatas”, voltando todos para o nordeste, deixando São paulo em grandes multidões, à pé, à cavalo, em velhas carroças, ônibus desconjuntados, caminhões abarrotados de gente.

A presciente narrativa de Geraldo Maciel, retrata uma verdade irrecorrível. São Paulo, a grande metrópole de ferro e concreto, é sustentada pelos nordestinos. São eles que erguem os prédios, limpam a sujeira do dia a dia da cidade, abrem as escolas, vigiam o sono dos empresários, limpam suas casas, servem-lhes comida nos restaurantes, depilam e manicuram seus pelos e unhas, limpam seus banheiros, em apartamentos de luxo ou em prédios de escritórios… … São garis, motoristas de ônibus, vendedores ambulantes, vigias noturnos, guardas de trânsito, alguns são bombeiros, muitos são policiais.

Os personagens de Geraldo Maciel têm nomes parecidos com os dos cidadãos nordestinos que agora deixam São Paulo, e voltam para o nordeste. José Nazário, personagem do conto, pede uma passagem para “Solidão”, um “paraíba” acossado por uma saudade intensa da terra, do cheiro do mato, da liberdade e da alegria nunca mais sentida, do ar puro, do canto dos pássaros, do calor do meio dia, do sol a pino.

Ele era só o primeiro da fila de uma multidão que queria o mesmo. Deixar São Paulo, regressar ao nordeste, apossar-se de novo de um naco de vida da infância, tecido de pobreza e de liberdade, tudo junto, feito uma comida simples e conhecida.

A literatura pode fazer isso. Escavar uma situação, aumentar suas cores, ampliar sua natureza, ficcionar sobre a sua realidade. Geraldo Maciel escreveu como se pintasse um quadro grandioso da situação dos nordestinos em São Paulo, e não economizou nas tintas. E agora assistimos a centenas, senão milhares de pessoas regressando ao nordeste, deixando à pressa uma cidade sem água, sem emprego, sem transporte, sem saúde, sem moradia.

E quem ganhará com esse novo êxodo? Certamente não serão esses nordestinos que regressam e que se alimentarão da curta alegria de chegar e rever seus parentes e amigos. Saídos da estrada da pobreza e da desigualdade, permanecerão na mesma trilha das faltas e carecimentos. O capital mundial, este ser invisível, apesar de robusto, é quem de fato ganha com as crises. Deixa de investir no emprego de alto custo, e passa a investir em si mesmo, em paraísos fiscais onde já não há noção de pátria nem de cidadania.

Retorno ao romance de Geraldo Maciel, a ver se Nazário terá um final mais feliz, empurrado ao encontro de sua longínqua Solidão.

(Maciel, Geraldo. Aqui As Noites São Mais Longas, São Paulo, Mombak, 2014, livro em formato digital, da coleção Latitudes, organizada pela escritora Maria Valéria Resende).

Philae, Um Reporter Cósmico?

Endereço, 67P/Churyumov-Gerasimenko. Localização, a uma distância de mais de trezentos milhões de quilômetros do planeta terra. É onde mora a mais de sete meses, o robô Philae,um dos módulos da sonda Rosseta, da Agência Espacial Europeia. A notícia de que ele reviveu e fez contato com aterra, na noite do último sábado, 13 de junho, é talvez uma das mais importantes para o século XXI, no campo da corrida espacial e das suas descobertas.

O robô havia sido deixado no cometa em novembro, mas, em sua aterrisagem, foi parar em um lugar pouco iluminado, um incidente lamentável, já que suas baterias estavam no fim e se autocarregariam através de painéis de energia solar. Mesmo assim, Philae ainda trabalhou por cerca de sessenta horas, falou com a terra por oitenta segundos, enviou mais de trezentos pacotes de dados, e hibernou.

Foram sete meses de sono profundo, mas, não se pode dizer que a nova casa de Philae seja um lugar ttranquilo. Safanões, explosões, erupções de grandes volumes de gazes, fizeram com que Philae chegasse mais perto do sol, e, num sábado à noite, em vez de ir à balada, o robô despertou e mandou um tweet, chamando todos ao trabalho.

Pronto, estava dada a notícia do dia, do mês, quem sabe, a notícia do século. Um robô não sofre de enxaqueca, não pede aumento de salário, e, desde que fique perto do sol, garantirá muito mais do que os doze mil lotes de informação que já acumulou em sua memória.

Um robô como Philae, com seu corpo compacto, do tamanho de uma máquina de lavar roupa, não pensa duas vezes sobre vírgulas, substantivos, sequer fica ponderando sobre a necessidade ou não de adjetivações.

Philae sabe usar o Twitter, mas não desperdiça tempo nem palavras. Philae trabalha, coletando imagens espetaculares para enviar à terra.

Philae não sente solidão nem saudade, tampouco suspende o ato de fotografar ou de escrever, por conta de um dilema ético.

Sou tentada em pensar no robô, como uma espécie de repórter cósmico,para quem furos de reportagens nunca serão problemas. A exploração espacial envolve um universo tão amplo, com acontecimentos tão complexos, que sempre terão um grande público fiel.

Sentado sobre o cometa, Philae vasculha o que poderíamos chamar de a “escrita” mais primitiva da história do universo. Como se viajássemos no tempo, porém, sem o impacto terrível de ultrapassarmos a gravidade, para irmos viver num lugar ao mesmo tempo belo e insólito. Philae fará isso por nós, e torço para que nos envie muitos e muitos furos da sua longa e fascinante reportagem.

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Junho Chegou, Os Bem-te-vis estão alegres

Sim, é verdade. Eu sempre escrevi sobre os finais de tarde da minha cidade. Escrevi ora com a mão pesada de paixão, ora com a quietude do espírito em contemplação, ora como que quase suspendendo as palavras, para espreitar, sob a cúpula do silêncio, um raro som, vindo de uma casa distante.

Mas junho chegou, com suas manhãs feito pérolas frias, a gotejarem na bacia do tempo. Junho chegou com suas manhãs ora nubladas, ora iluminadas por um sol que se suaviza e bebe com calma o orvalho das madrugadas nas taças brancas das flores de Lyra.

Junho chegou, e os bem-te-vis estão alegres. Entoam seu canto de três sílabas, como se sorrissem, como se, para aproveitarem a temporada, se enfeitassem de brisa, essa brisa que vem do mar, ou que chega do rio Jaguaribe, alisando por onde passa, folhas, flores, troncos grossos de árvores centenárias, indiferentes ao trânsito da cidade.

Junho chegou, os bem-te-vis estão alegres. Contemplo essas duas frases, como se fossem elos de uma mesma corrente, de um mesmo fluir de tempo, doce, indissociável.

Com alguma tristeza, penso que só posso provar dessa alegria, se erguer sobre ela o dique das palavras. Sinto a brisa da manhã, escuto a sonata dos bem-te-vis, em cada sílaba, exultação, pura exultação.

Pousados nos postes, nas torres de tevê e de telefonia móvel, de onde saltam para os galhos mais altos das árvores, os bem-te-vis estão alegres.

Os bem-te-vis estão alegres, de uma alegria pura, alegria de estarem num mundo feito de altitudes, de planos improvisados de voo, sob a quilha de um vento enfunando de leve suas asas tenras.

Os bem-te-vis estão alegres. Sonho com uma manchete de jornal, em letras garrafais, dando essa notícia delicada, com o mesmo estardalhaço com que cantam os pássaros, nas manhãs de junho.

Lead retumbante esse, de bem-te-vis cantando na manhã de junho, notícia curta, uma nota talvez, mas, tão íntegra na sua verdade, tão flagrantemente indispensável no quadro dessa manhã, em que já se anuncia chuva, em que da borda do mar, ondas maiores espremem sua vigorosa faina de ir e vir, ir e vir.

Desligue a tevê. Desconecte também a sua segunda tela. Escute os bem-te-vis, sinta a alegria desses pássaros na manhã de junho. Sinta o cheiro do mar, assista ao dique da chuva caindo de leve, na calçada da sua rua. Entre de novo em casa e avise à família: Os bem-te-vis estão alegres. Feche o jornal, esqueça a tragédia de estarmos vivos entre tantos mortos, desligue a maquinaria inútil da política, esqueça a infame ganância dos amealhadores de notas frias e contas milionárias em paraísos fiscais.   Por um minuto, assista a esse pequeno espetáculo, a essa alegria composta em três sílabas, sob a percussão da brisa, da chuva, sob a luz do sol da manhã de junho.