Saída de Si

Você me disse que queria sair de si, e a frase brotada do seu desalento foi como um chamado, uma senha, um eco reverberando dentro de mim mesma.

E eu fiquei pensando como seria empreender essa viagem. Fiquei pensando que eu também queria sair de mim, sair de mim sem fazer as malas, sem passar no caixa eletrônico, sair de mim de vagarzinho, às apalpadelas, como se não desejasse me despertar do meu sono leve, como se fugisse das despedidas,sair de mim pela porta da cozinha, sem sequer olhar para a louça amontoada na pia, o cesto de lixo a abarrotar das cascas da manga que eu comera a pouco,sair de mim com o vento da manhã a zunir os seus impropérios de brisa por entre as roupas do varal.

Sair de mim sem fazer alarde, como na música cantada por Chico, empoleirar-me na árvore torta, à frente da minha casa, como um chumaço de folhas, quem sabe um pequeno pássaro ressabiado com sua primeira proeza de voar, Sair de mim para depois me procurar, e me ver fazendo as coisas de todos os dias, o café da manhã, a oração desordenada e sem rumo, no sofá da sala, a busca do correio eletronico,  a escolha da roupa, a escovação dos dentes,o pentear do cabelo, a mão no trinco da porta, o premir do elevador, chegando perto da árvore torta, consultando o relógio, a mão direita abrindo a porta do banco do carona.

Saída de mim, eu então me perguntaria quem saíra de casa, e por um momento, um ínfimo momento, eu pensaria que eu estava morta. Depois sorriria de tamanha tolice. Era a vida o que habitava em mim, com toda a sua leveza, com todo um suave desatino que me permitia moldar pensamento, movimento e ação.

E sem nenhum laivo de tristeza, pensei que era você, desapropriada de mim, quem tinha morrido, com todo o peso das suas roupas, da sua pele, do bando de pássaros do seu desespero a fazer ninhos dentro de si.

E eis que você, misteriosamente surgida do nada, com seu eterno modo de querer controlar as coisas, desarticula minha árvore torta e encerra minha viagem de si com o um insípido ponto final.

“O Nome das Coisas”

Forte, curto, mas, delicioso, feito um café expresso. E foi totalmente produzido aqui em João pessoa, reunindo a maestria, a experiência e a novidade de juntar, como num coquetel, cérebros, arte, simplicidade e complexidade, em um belo material.

Estou falando do cd “Quarta Capa”, lançado no último dia 13 de janeiro, na Usina da Energisa, reunindo a poesia de Lau Siqueira, a arte musical de Paulo Ró, a voz surpreendentemente madura e original de Dida Vieira.

O disco tinha todos os ingredientes pra dar certo, e deu. O cd é desconcertantemente belo, seja pelas explorações exóticas das sonoridades de Paulo Ró, seja pela poesia ora cortante, ora íntima, ora casual de Lau Siqueira, seja pelos arranjos magistrais, ao mesmo tempo despretensiosos e sofisticados naquela simplicidade que os idealizadores buscaram imprimir ao trabalho.

Antes do show, já tinha escutado o disco, que minha filha Mayra Siqueira pôs pra tocar, enquanto viajávamos pela serra paraibana. O trabalho deflagrou em mim, um diálogo íntimo, espécie de caleidoscópio, em que a mescla da música com as metáforas poéticas, no momento mesmo da audição, criavam aberturas para onde o pensar organizado se desfazia em pura fruição, em contemplação extasiada da bela voz de Dida Vieira, alargando os poemas de Lau Siqueira, com o misto de força, leveza e simplicidade que conformam a criação musical de Paulo Ró.

O disco foi todo produzido aqui, pelo estúdio Peixe Boi, e não deixou nada a dever às grandes produções nacionais. Cada música rebenta e se entrega como um presente aos ouvidos, ao intelecto, ao prazer da contemplação pura e simples.

O disco confirma a máxima dita na primeira música: “O poema é sempre um espetáculo um pouco mais denso”, reverberando nessas sonoridades buriladas na paciência e no cinzel de Paulo Ró, ecoadas em seus belos arranjos, percutidas pela voz de Dida.

O disco todo é curto, mas prolonga-se na alma da gente como se fora uma bebida exótica, com seus sabores de “magia das poções, diluída no oco das coisas”.

Um disco para se ouvir com alegria, com calma, um disco para deixar tocar, enquanto se viaja, enquanto se prepara um café, ou mesmo enquanto se corre na praia, deixando que as sonoridades surpreendentes de Paulo Ró façam dueto com o ir e vir das ondas de Tambaú.

Escute o disco. Você se surpreenderá com a arte de se encaixar poesia minimalista em música, e deixar que o casamento se faça, na arte da escuta. “Quarta Capa”, esse “pequeno pássaro pousado nas crinas da manhã”, é mais um presente que a Paraíba ganha dos seus músicos, dos seus poetas, dos seus intérpretes. E se você me perguntar, – qual a música que eu mais gostei, eu lhe digo, aquela que estou cantando agora, enquanto escrevo: “Passo pelo mundo, ancorado numa coragem, que desconheço. Sei lá de que lado está o meu avesso.

Plásticos e Carbonáceos: Nossas Terríveis Pegadas no Planeta Terra

 

Das espécies vivas, somos talvez a mais curiosa, a mais inventiva, a que mais experimenta modelos de organização econômica e sociocultural. Tanto que os cientistas querem oficializar uma nova era geológica, toda ela inaugurada a partir da ação da espécie humana no planeta. O nome tem status e celebridade. O impacto dessa era sobre a vida do planeta, entretanto, nos deixa a pensar sobre o que realmente fizemos em nome do progresso e desse modelo de desenvolvimento atual.

O termo Antropoceno, foi cunhado na década dos oitenta do século passado, pelo ecólogo americano Eugene Stoermer, para ilustrar o impacto das populações humanas no ambiente. Um recente estudo publicado pela revista Science, demonstra entretanto, que já podemos oficializar a era geológica do antropoceno, a partir de evidências que já se incorporaram à geografia do planeta desde os anos 50 do século XX, e que, poderão ser detectadas na terra daqui a milhões de anos, mesmo quando já não estivermos aqui.

Ultrapassamos o Holoceno, período geológico de cerca de 11 mil anos, mas não há como nos orgulhar desse feito. O mais recente modelo civilizatório de desenvolvimento, pós revolução industrial, legou à geografia da terra, novos tipos de rochas e minerais, que conforme revela o estudo da revista Science, refletem uma rápida disseminação global de alumínio puro, concreto e plástico.

Mas não é só isso. A queima dos combustíveis fósseis vem espalhando por todo o planeta, esferas de cinza e fuligem, além de novas partículas inorgânicas e carbonáceas, as quais ficarão incorporadas aos sedimentos da terra por milhões e milhões de anos.

Inventamos os tecnofósseis. Termo cunhado pelos cientistas para esses materiais que sobreviverão até um futuro distante, mesmo que nossa espécie venha a ser extinta.

Nossos rastros vão mais além, nos trilhos da transformação destrutiva dos ecossistemas do planeta. Em poucos séculos, estimativas desses estudos preveem a destruição de mais de setenta por cento das suas espécies vivas.

Nosso modelo industrial de desenvolvimento aquece o planeta, alterando profundamente os ciclos climáticos, através do fenômeno conhecido como efeito estufa. Queremos habitar sobretudo nas zonas urbanas. Desmatamos, construímos represas para nosso abastecimento de água, e não criamos alternativas para a reposição dos recursos naturais, que consumimos com uma ganância desmedida.

A ameaça maior vem do nosso apetite bélico, que inaugurou a era atômica, com pelo menos duas explosões na segunda guerra, e com dezenas de testes ao longo da era atual. Essas terríveis peripécias depositaram no solo do planeta, um excesso do carbono 14, versão mais pesada do átomo de carbono, corroborando com essa nossa assinatura, a passagem do holoceno para o antropoceno.

Mudamos o planeta, com um apetite sem igual, mas, podemos não gostar da resposta que a terra nos dará.