A Gramática da Maldade

Algumas palavras nunca deveriam ter sido inventadas. Não deveriam ter espaço nas páginas amarelas dos dicionários, assentadas entre verbos, substantivos, interjeições e conjunções. Não deveriam sequer figurar entre as frases bem articuladas dos âncoras de televisão, tampouco deveriam ser escritas daquele modo inteligível nos receituários, nos prontuários, grafadas nos boletins de ocorrência, derramadas quase à exaustão nas redes sociais.

Algumas palavras, tendo sido inventadas, poderiam padecer de alguma má formação, que as desobrigasse de encontrarem alguma materialização no estofo da carne, nos corpos machucados, no mais recôndito das almas torturadas, num perpétuo pavor, sem nome próprio e sem alívio.

Algumas palavras, pequeno arranjo de letras, são duras ao serem escritas, lidas, pronunciadas, porque carregam uma cadeia de inúmeras outras palavras terríveis: Ferocidade, egoísmo, crueldade, e todas as outras palavras marcadas à ferro e fogo nos corpos das vítimas: Hematomas, escoriações, sangramentos, esganaduras, arranhões, muitos arranhões, gritos, safanões, esgares e sorrisos diabólicos, mordidas, queimaduras, chicotadas, beliscões, privação de sentidos, bofetadas, soluços, desmaios.

Algumas palavras, ao encontrarem o ato que as define, são como tenazes de fogo, escavando, violando, macerando, penetrando, forcejando, esmagando, aniquilando, sujando, uma, duas, três, quatro, trinta vezes repetindo o ato selvagem, compactado nessa palavra infame de três sílabas, sete letras.

Nos vagões de metrô, nas paradas de transportes, com a palavra torpe, abate-se a alma das vítimas, sua dignidade, sua condição feminina. Com a palavra maldita, transforma-se em lixo o que poderia ser sonho e futuro.

 

 

Temer não vai Parar a Lava Jato

 

 

De quem é a vitória do processo de impedimento da presidenta Dilma Rousseff? Que efeitos e impactos ele terá na sociedade? Pensei muito sobre essas questões, enquanto assistia ao último longo dia que só se encerrou na manhã de ontem, e firmaram-se aqui dentro da minha cabeça algumas convicções.

O processo de impeachment  é de fato um golpe parlamentar e só foi possível na conjuntura específica em que o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, dispunha de vontade e de poder de influência sobre o quórum qualificado dos 367 parlamentares que votaram positivamente na proposta de afastamento da presidente.

Creio porém que o mais importante fator de impulsionamento e vitória desse processo, tanto na Câmara como no Senado, é a Operação Lava Jato, e a maneira como ela vai sendo operada, como uma espécie de máquina engenhosa, que ora  é acionada e captura suas vítimas, ora é entremostrada aos que ainda não foram capturados, funcionando como uma ameaça clara a projetos políticos de centenas de parlamentares, distribuídos nas duas casas do Congresso Nacional.

Assim ouso pensar que o grupo judiciário que lidera a Lava Jato, sob a coordenação do juiz Moro, está em perfeita sintonia com o grupo político que deflagrou o impedimento, e que agora precisa levar a cabo o projeto da “Ponte para o Futuro”, envolvido com a marca publicitária de “Ordem e Progresso”.

É verdadeira a máxima repetida por Temer e ecoada na mídia brasileira, de que a Lava Jato não vai parar. Agora a operação entrará numa nova fase, menos frenética, mais burocrática, mas, servirá como a espada de Dâmocles nas cabeças dos parlamentares renitentes ao projeto do país de futuro a ser implementado pelo governo interino.

Uma coisa que ninguém diz a sociedade porém, mas que já vem sendo comprovada nos últimos dias, é que certamente a Lava Jato não ameaçará o novo governo.  O primeiro objetivo da operação, qual seja, a criminalização do Partido dos Trabalhadores, seguirá seu curso, visto que o processo de impedimento ainda não tem um crime, um atentado à constituição, cometido pela presidente. A Lava Jato serviu e servirá como alimento à vontade política para retirá-la de vez do cargo, e de bônus, impedir que o ex-presidente Lula concorra às eleições em 2018.

Central nessa organização parlamentar/judiciária, será a atuação da mídia comercial privada, que construirá a narrativa apropriada a um país que caminha rumo ao futuro, acentuando os desafios do novo governo, e alimentando com fatos novos ou requentados, a cobertura desvantajosa dos treze anos do petismo.

Os impactos desse processo no âmago da sociedade não são fáceis de prever no momento atual, mas é certo que se reestrutura à força do golpe, a política tradicional do PMDB, pronta a azeitar suas fórmulas antigas com as receitas neoliberais dos parceiros do PSDB.

Se em 2014 a sociedade estava polarizada, agora ela está dividida por muros, e, a ponte que a faria transpor para o futuro, na verdade a impele a um retrocesso que traduz-se numa ameaça cabal à diversidade humana e cultural, aos direitos de cidadania e a possibilidade da construção de um país menos desigual e mais justo.

 

Este post será publicado em minha coluna impressa do Jornal a União de amanhã.

Cenas que Eu Nunca Vou Viver

Por esses dias em que me posto diante da tevê, para acompanhar os fatos políticos que sacodem o país, penso muito no meu pai, que se ainda estivesse entre nós, teria completado, no último domingo, 91 anos de vida.

Imagino uma cena em que eu e ele, sentados lado a lado, falaríamos sobre o processo de impeachment da presidente Dilma, e, comemoraríamos juntos a última decisão do ministro do Supremo, Teori Zavasck, de afastar da presidência da Câmara dos Deputados, o deputado Eduardo Cunha.

Quando meu pai nos deixou, em 1993, o país dava os primeiros passos lentos para o desenvolvimento e a difusão da telefonia móvel. Alguns anos depois, iniciava-se o boom dos computadores pessoais e da expansão dos primeiros provedores de internet.

Meu pai não chegou a conhecer nem utilizar um celular, tampouco acompanhou o modo novo como passamos a nos comunicar, via computador, modens conectados, e agora, via smartphones.

No campo político, meu pai ainda assistiu à disputa Collor Lula, de 1989, na qual o petista foi derrotado. Na sua própria casa, meu pai assistiu ao fortalecimento do Partido dos Trabalhadores, porque muitas vezes, nós, jovens militantes, nos reuníamos na varanda de casa, para pensar estratégias e ações de mobilização.

Meu pai viveu a maior parte da sua vida adulta na zona rural, erguendo cercas, cuidando da terra dos latifundiários de Pernambuco, algumas vezes fazendo as vezes de vaqueiro, nas fazendas em que trabalhou.

Quando veio para João Pessoa, converteu-se em vigia noturno de uma empresa de construção.

Meu pai, analfabeto, só sabia ler o mundo através da régua da justiça, da honestidade. Imagino pois a cena em que eu teria que lhe explicar porque considero que na atualidade, o país vive um processo de golpe parlamentar jurídico midiático.

Pessoas simples como o meu pai, não conseguem compreender as peças parlamentares que constituem a justificativa para o impeachment. Tanto na Câmara como no Senado, os relatores produziram em centenas de páginas, não propriamente as provas dos supostos crimes que a presidente teria cometido, mas destilaram, em palavrório jurídico-político, tentativas explicativas incompreensíveis no universo da população mais humilde, das justificativas para o exercício do “Fora PT, Fora Dilma”.

Para pessoas simples como o meu pai, a verdade que salta aos olhos, e que não necessita senão de apenas algumas frases curtas, é a de que a presidente Dilma, no exercício do mandato, não esteve envolvida em nenhum ato em que pessoalmente atentou contra a constituição do país, conforme rezam os dispositivos legais do impedimento.

O governo da presidente, em seu segundo mandato, empossado em janeiro de 2015, ainda não conseguiu decolar, vendo corroídas as suas bases de sustentação parlamentar, e tendo de conviver com uma crise econômica de proporções mundiais.

Imagino eu e o meu pai assistindo aos discursos da presidenta, à força da sua indignação. Imagino mesmo o gesto do meu pai, afastando com mãos trêmulas uma mecha de cabelo do meu rosto, e dizendo, com sua voz serena: Dilma fica.

 

(Este post foi publicado na última sexta-feira, em minha coluna impressa do Jornal A União).