Os Quatro Tempos da Morte

 

Os legistas disseram que não é possível determinar de que fuzil partiu a bala assassina que vitimou Agatha Félix. Os legistas disseram muita coisa. A bala partiu de um fuzil, mas, no corpo da menina, fragmentou-se toda, como se quisesse esconder rastros, como se quisesse mascarar o crime.

Os legistas devem ter visto que a menina morreu rápido. Apartou-se do lençol pesado de medo que a cobria, do pequeno travesseiro de alegria que  percutia em seu corpo, por conta da sua última aula de balé.

Os legistas não souberam dizer de onde partiu a bala de fuzil. Rápida, certeira, vindo direto ao banco da combe onde a menina mastigava seu medo e sua alegria, como se fosse uma refeição incongruente, pedaços de coisas estranhas dançando no seu estômago, nas suas vértebras, nas suas mãozinhas

suadas.

Por causa do seu protocolo, da sua linguagem técnica, dos seus rituais, das suasconveniências, os legistas não disseram o essencial, fizeram silêncio absoluto sobre o que viram, na pequena coluna destroçada, no rostinho exangue, nas mãozinhas hirtas e geladas.

Os legistas calaram-se ante à retumbante verdade debruçada sobre aquele cadáver pequeno, gritando suas sílabas peremptórias: Eu sou a máquina da morte. Estou aqui para a debulha, a ceifa,  o trucidamento. Sou fruto de leis, protocolos, decretos.

Eu sou a máquina da guerra: contra os pobres, os negros, e não pouparei meninos e meninas fardadas, vestidas para o balé, com suas mochilas quase vazias, guardando suas merendas caseiras.

Os legistas ajustaram suas máscaras, desviaram o rosto, mas, debruçada sobre o pequeno corpo de Agatha Félix,  a verdade prosseguiu no seu libelo: Sou inflexível, imperiosa, envolta nesse vórtice poderoso de ódio que imprime sua fala definitiva nos corpos, nas vielas, nos becos, no caminho nervoso do trânsito, até os hospitais, os necrotérios, as pedras frias da morte.

Os legistas têm pressa. Encerram o trabalho com mãos nervosas. Envolvem o corpo em seus lençóis brancos. Arrancam máscaras, batem portas, abandonam a sala da morte. Lavam vigorosamente as mãos, enquanto lá fora, a máquina da guerra executa seu bailado. O som é áspero e duro, aqui não há semibreves.  e semicolchêias retumbantes, atritando-se, esbatendo-se em corpos tenros de meninos e meninas, esburacando paredes, pedaços de asfaltos, bancos de combes em fuga.

E eis que a única semibreve vibra seus quatro longos tempos. Os quatro tempos da morte.

O Jornalismo da #VazaJato e as suas Lições

Havia um nítido clima de tensão na última edição do programa Roda Viva, levada ao ar pela Tv Cultura, na segunda-feira, 2 de setembro. Com raras exceções, as vozes dos jornalistas tinham tons alterados, as inquirições, de todos eles, eram de ataque, da busca por uma falha, um deslize   que fosse nas respostas firmes, rápidas e elucidativas do jornalista Gleen Greenwald, entrevistado da vez.

Para uma plateia de centenas de milhares de telespectadores, audiência barulhenta que participava do programa pelas redes sociais, o que ficou patente naquela entrevista, foi, de um lado,  a revelação clara da arquitetura do jornalismo brasileiro comercial, e, do outro, um modo de fazer jornalismo calcado no ideário clássico da profissão, cujas lições são as da investigação dos fatos até as últimas consequências; a preservação dos   seus preceitos éticos, a defesa intransigente da pluralidade, da imparcialidade e do sigilo das fontes.

Mais do que tensão, a meia dúzia dos jornalistas presentes na bancada experimentava medo e revolta. Medo por se verem expostos a uma implacável máquina demolidora dos ataques, das tentativas da prática jornalística do premiado Gleen Greenwald, revolta por sentirem estar sendo desmantelada de maneira célere, a fabulosa história sobre a Lava Jato e as suas conquistas, divulgada, alimentada, acarinhada  e cultivada com esmero pela mídia brasileira durante os últimos cinco anos.

Para compreendermos a situação de indigência vivida pelo jornalismo brasileiro, que está vendo ir pelo ralo, um dos acontecimentos jornalísticos mais bem construídos dos últimos tempos, há que se retornar às duas últimas décadas do século XX, quando a mídia do país alcançou um formidável progresso técnico, ingressando de vez no paradigma tecnológico. Transformaram-se completamente as rotinas do fazer jornalístico. O progresso técnico, porém, imprimiu à prática dos profissionais, uma produção voltada ao sensacionalismo, à informação de consumo ligeiro, a primazia de um jornalismo declaratório, esvaído de todos os seus processos qualitativos: apuração, investigação, pluralidade e imparcialidade das coberturas.

Os altos custos do progresso técnico da mídia, exigiram também, dos seus proprietários, uma proximidade cada vez mais nítida entre a construção de uma opinião de consenso sintonizada com os interesses do capital nacional e norte-americano, forjando uma leva de jornalistas fazendo coberturas homogêneas, publicando releases e dando voz a declarações sem um naco qualquer de apuração, repercussão, interpretação.

A Lava Jato e os seus heróis, não teria vivido sua era de ouro, não fosse a cumplicidade, quase conversão da mídia brasileira. Mas eis que o jornalista Gleen Greenwald saca da sua premiada ousadia e coragem, desce aos porões da Força Tarefa, e de lá exuma uma realidade obscura, tecida por corrupção, clientelismos, parcialidade e aferição criminosa de lucros.

O Roda Viva da última segunda-feira foi uma tentativa vã dos jornalistas, para desqualificar o trabalho que eles próprios não quiseram fazer. Foi um esforço medíocre e vergonhoso para salvar seus heróis e a gigantesca fábula da Lava Jato. Foi um apelo barulhento para tentar ocultar as falhas de um jornalismo realizado impunemente a serviço da criminalização, da difamação de pessoas, do cultivo do ódio e da interferência criminosa nos destinos da política do país. Foi um débil grito para tentar calar os resultados nefastos da sua cobertura: O hediondo país governado por Jair Bolsonaro.

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(Este post foi publicado hoje, em minha coluna impressa do Jornal A União)

O Dia do Fogo

As árvores sabem quando o dia do fogo vem chegando. A árvore que fica perto da rodovia pressente em suas fibras, em seus galhos, o trepidar dos pneus dos caminhões, o calor das vozes alteradas, o aprontamento e o disparo das tochas, a velocidade do fogo em busca da floresta.

A árvore lança para as companheiras, através do entrelaçar de suas raízes, a única mensagem de alerta: Está vindo. É mais quente que o sol. Vai nos matar.

Não há pânico. Especialistas da paciência, as árvores mantêm-se eretas, sorvendo as últimas carícias do vento, os velhos cheiros da mata milenar.

O fogo chega. As árvores vão rachando em bando, como espigas de tempo abertas em posições esquisitas, crestando aos pedaços.

Morrem de vagar, numa agonia coletiva, desmentindo sílaba por sílaba o velho poema: “Por que as árvores morrem de pé”? Morrem caindo juntas, suas últimas palavras aprisionadas no fundo das raízes, intenções de abraços desfeitas em brasas, o fogo rasgando suas fibras, seus anéis de tempo, as feridas dos insetos, as frágeis ninhadas de arbustos agarradas aos troncos ardentes.

Deformam-se, as árvores, numa espécie de procissão demoníaca, para baixo, sempre para baixo, lá onde não há Deus, senão a língua vermelha do espírito do mal.

Viram cinza esvoaçante, abraçam-se em fumaça cheirosa, abatem-se sobre a terra de toda sua vida, mas não há descanso, não há paz, não há lugar onde acalentar galhos caídos, queimando.

As árvores não rezam nem pedem clemência, apenas queimam em estalos que já não são aquele vozear de galhos abraçados, raízes ocupadas em recolher da terra o alimento vital.

Apenas queimam, as árvores, em estalos e espasmos medonhos e esbarram à pressa na terra que pega fogo.

A risada medonha do fogo lambe o solo da lembrança das árvores, espalha cinza como curativo escuro por sobre as crateras abertas. Num último frêmito, , as árvores vomitam aos bocados, o carbono guardado em suas reservas milenares. Vomitam sobre a terra, e o jorro volta surpreso a um céu vermelho e fumacento.

Tocos quase mortos de febre ainda resistem, agarrados ao chão, vigias da sanha de queimar, destruir. Testemunhas do incêndio, os tocos quase mortos de febre escutam o riso cínico, a galhofa dos homens maus.

Trementes de febre, finalmente os tocos se lembram da velha oração de todos os dias, crepitando aos borbotões por entre suasfendas. A prece da cura para as rachaduras milenares, a oração calma de engendrar anéis de tempo, o ofício do socorro para as árvores tristes, pelos golpes de motosserras, pela sanha dos carunchos…

Os tocos esgotam suas orações, quando já tisnados e feitos em carvão.

O silêncio é medonho agora. A terra cansada, então dá-se conta, por entre os rescaldos: Não há mais a ternura pesada das árvores vivas sobre o solo, senão a implacável nudez, feita da solidão das escaras, rachaduras   cobertas de cinza.

 

(Este post foi publicado em minha coluna impressa do jornal #AUniao, em 30 de agosto).