A Teoria das Gavetas

Quando eu era pequena e investigava o mundo sondando seus cheiros, sopesando a essência da terra por entre os meus dedos, inventei uma teoria muito própria para explicar o vento, o sol, a chuva. Minha teoria partia da hipótese de que todos aqueles fenômenos aconteciam no céu. Munida dessa primeira compreensão, construí a ideia de uma engenhosa montanha, uma imensa montanha, começada ali, à margem da terra, com suas plantinhas rasteiras, sua terra dura e pedregosa.

Tenho tão nítido em minha memória o jeito do sopé daquela montanha, minhas mãos e meu corpo a inventarem a melhor maneira de escalá-la!

Subir, subir, encontrar o céu, e, miraculosamente entender os fenômenos do sol, da chuva, do vento..

Sim, o céu era um imenso lugar, no topo da montanha, cheio de gavetas. Gavetas para guardar a chuva, gavetas para guardar o sol, gavetas para guardar o vento.

Somente quando cresci, somente depois de haver estudado comunicação e semiótica, compreendi duas coisas sobre a minha teoria: 1. Ela estava completamente, estrondosamente equivocada. 2. Aquela era de fato uma grande teoria que só poderia ter sido pensada por uma criança cega. Uma criança cega que precisava de suas mãos e do seu corpo para compreender o mundo.

Uma criança cega que precisava irremediavelmente de um modo de pensar encravado na sua percepção tátil de mundo.

Por que agora mi volta à lembrança aquela minha teoria suja de terra e mato? Será que as gavetas estão mesmo somente no céu da minha teoria?

Noto que as minhas gavetas também já foram apropriadas para muitas outras explicações do mundo. A ciência, quantas e quantas gavetas já não inventou, para classificar seus fatos e até para esconder aqueles para os quais não tem explicação?

E o jornalismo? O jornalismo também tem as suas gavetas, e é delas que extrai as suas tentativas para classificar os fatos.

Sim, podemos dizer, o jornalismo se constrói todo dentro de gavetas. É nelas que ele vai buscar as cifras, os adjetivos, as frases de efeito, para amarrar o fato, controla-lo, alisar a sua face noticiosa.

Será por isso que os fatos estão quase todos sujos da mesmidade que demarca a cobertura jornalística? Não seria hora de se permitir que outra teoria suja de terra viesse quebrar as gavetas e libertar os fatos dos adjetivos e da numerologia de gaveta?

Olho para minha montanha, olho para o meu céu inventado, abro as gavetas da chuva, do vento e do sol e corro para perto do mar, para escutar a sinfonia do que não se explica, do que não cabe em palavras, em gavetas,  do que se desamarra e se liberta, em compasso com o ritmo das ondas.

 

Neno, Nena e muito mais

Amanhece em Bitinguí e os pássaros daqui têm uma alegria desmedida. O mar, orlado pelo coqueiral, inventa sua eternidade, ondas a se desmancharem, brincando de enrugar e alisar a terra.

Abro a portada da varanda e não há notícias do frenesi  de cidade grande, apenas o povoado acordando para o sol, para a pesca, a faina de cada um, simplesmente amanhecem em Bitinguí e sei que o dia seguirá seu curso, sem pressa.

Se eu pudesse me dar o tempo de aprender sobre esse pedaço de mar quase esquecido, protegido pelo renque dos coqueiros, seu eu pudesse me dar os dias de caminhar por essa pequena faixa de terra, para decifrar suas rugosidades, seus aplainamentos, suas folhas secas, eu ficava aqui.

Ficava aqui para assistir ao dia começado de Neno e Nena, tocando a pousada Lua Cheia. Ela, pequena, falar suave, as palavras tecidas com uma antiguidade menineira guardada numa mulher cujas mãos estão sempre a tecer e destecer o manto do cuidado, do arranjo, da gentileza  e generosidade.

Neno, econômico no falar, seu mundo construído por ele mesmo, determinação e simplicidade sendo a argamassa melhor da sua obra.

Foi Nena que chamou a pousada de Lua Cheia. E a cada quarto deu um nome ligado à lua. Estou no Lua Nascente, bem ao pé do dia amanhecido, ao final do corredor.

Fico assistindo aos retalhos da manhã. A alegria dos bentevis, um grilo esquecido de que já é dia, a martelar o concerto das aves. Não sei se é Neno ou Nena que varre sem pressa as folhas de ontem.

Não, queridos leitores, essa não é uma invenção da minha escrita, tão pobre ela é para traçar as margens, a simplicidade e a beleza de Bitinguí.

Bitinguí, Neno, Nena, o mar todo entregue somente para quem chegar, isso tudo existe de verdade, em Japaratinga, alagoas.

Você chega e Nena lhe entrega a chave do quarto. Lua Nova, Lua Minguante, Lua nascente… Nena lhe entrega a pousada Lua Cheia, esse pequeno edifício plantado na linha dos coqueiros, e de presente, Nena lhe aponta a praia, indica o caminho por onde ir, desviando você dos buracos, sem falar nada, que palavras aqui não são necessárias, Nena lhe entrega o mar, e ele é todo seu, quase como um amigo íntimo, a quem você não precisa contar nada, mas apenas deixar-se lavar por essa água morna de fim de dia.

Não tenho nenhuma fotografia, somente as mãos e a alma imundas de encantamento, por Bitinguí, sua paz, suas horas cheias de vento e silêncio, a alegria dos bentevis, seu cheiro de mar e de mato, a faina de Neno e Nena,  a cuidarem desse lugar de conto de fada, encravado nesse pequeno recanto de mundo. Esse lugar existe e nos ensina sobre outro ritmo, outro modo de caminhar, sem pressa, parando aqui e ali, para escutar o dia, os pássaros, o silêncio, tingido da música do mar.

O Gesto Universal 2

O voto do ministro Celso de Melo, tendo durado duas horas e quinze minutos, foi ainda mais rápido do que a atualização do #iOS 7. No Supremo, as fórmulas eram as jurídicas, ainda que se falasse do caos e da pressão das multidões. Na virtualidade, multidões e multidões apascentadas, apavoradas, estressadas, logavam-se no site da #Apple para atualizar seus dispositivos. Uma, duas, três, quatro tentativas até conseguir! Muito mais tempo que o voto do ministro, lido pausada e claramente, decidindo pelo acolhimento dos embargos infringentes. As novidades na atualização do aplicativo #Apple são muitas. Nova paleta de cores, um belo visual em todos os aplicativos, facilidades e facilidades com simples arrastar de dedo. No Supremo, o vozear da mídia tenta interpretar o último round desse que é o maior processo julgado na atualidade. Gestos universais, aqui e lá, lavram na cultura, os hábitos desse nosso tempo.

O Gesto Universal

(Este post está em minha coluna impressa do #jornalaUnião)

 

No dia de hoje, milhões de pessoas em todo o mundo, em horas variadas, estão reproduzindo um conjunto de gestos similares, para atualizar os seus sistemas #ios, nos dispositivos da Apple. Milhões de pessoas esperam com ansiedade para fazer o download, e suspiram de impaciência até serem finalizadas as configurações da nova interface. E, repetiram em todo o mundo, os mesmos gestos de varrer, tocar com as pontas dos dedos, agitar, pressionar o botão home para testar as novas funcionalidades.

Vive-se uma espécie de ritual cibernético global, marcado por uma coreografia manual tecida por uma gramática muito simples de gestos fundamentais, pondo em curso um prodigioso e complexo fenômeno de distribuição, transmissão e armazenamento de informações, em imagens, em áudio e em texto.

Fascinados, perdemos algum tempo explorando as redes sociais. Exercitamos aquela tagarelice virtual, como se fôssemos todos meninos saídos da sala de aula para o recreio. Milhares de pessoas trocando suas fotos de perfis, tuitando sobre atualização bem sucedida, algumas centenas pedindo socorro por algum insucesso.

O mundo instalado, atualizado, os horizontes previsíveis da telinha, deflagrando a imprevisível, inesgotável, instantânea  teia dos sentidos.

Ninguém presta atenção ao gesto universal e invisível da transferência. Ninguém pensa acerca dessa mutação que se estabelece, silenciosa, onipresente, avassaladora.

A cada minuto, a cada segundo, pro milhões de maneiras, vamos transferindo nossas vivências, nossas memórias, nossas melhores imagens, nossa identidade, nosso estado civil, nosso estado de espírito, vamos transferindo tudo para a nuvem, vamos entregando o que há de mais íntimo em nós, para a esteira rolante dos negócios do capital informativo.

Candidamente, sorrindo a cada clique, vamos facilitando o trabalho da vigilância cibernética. Rastros, pegadas, cifras, estatísticas, códigos, senhas, deixamos tudo lá, tendo como único guardião das nossas coisas, um avatar editado.

Sociedade líquida, derramando-se em bits, que depois são organizados em informação rentável, ou então alimentam a clássica função que os gerentes da política haviam solicitado à comunicação: Vigilância e harmonização do tecido social.

Deixem que brinquem, que cliquem, que curtam. O mundo editado fala mais sobre cada um de nós, do que sonha nossa vã filosofia. Vigilância? Que nome tão tolo! Quantos de fato se importam com os desvãos obscuros dessa observação virtual? Por agora, a colmeia cibernética é somente tagarelice e devaneio, até a próxima atualização, e por séculos e séculos amém.

No meio da Cozinha havia uma Pedra

Havia uma pedra no meio da cozinha, no meio da cozinha, havia uma pedra. Uma pedra com nome e sobrenome, dinheiro no banco e… endereço não revelado. Lição do dia: Nunca pague a um marceneiro, nem que ele lhe chame de doutora. Nunca pague a um marceneiro antes que ele aperte o último parafuso. Se você pagar antes, terá problemas de engenharia, de matemática, e, sobretudo, graves problemas de nutrição e alimentação. A cozinha dos meus sonhos virou “a cozinha dos meus pesadelos”. Paguei a senhor das tábuas e ele sumiu! Agora terei de trocar o granito da área seca, para acomodar o forno. E terei de fazer aliança com outro marceneiro, para acabar o serviço do caloteiro.Mas, prometo a você, garota 5.0, que quando esta cozinha estiver pronta, partilharei mais receitas, mais lições, mais conselhos loucos, arrancados a fórceps, na dura faina de aprender com os erros.

Zastrás

Cortinas fechadas, livros fechados, mas, antes de fechar os olhos, dizer uma coisinha a você, garota 5.0. O mundo dá voltas. Coisas que parecem inconciliáveis, resolvem-se quando você menos espera. E, antes de fechar os olhos, sorria intimamente dos seus dramas todos. Gargalhe para dentro de si, ajeite-se na sua cama confortável e vá dormir o sono das guerreiras, das que ora correm com os lobos, ora vão bailar com as borboletas.

Dia do Pai

(Este post foi publicado originalmente em www.joanabelarmino.zip.net)

 

 

Domingo, 8 de agosto de 2004,E uma chuva de agosto a batucar suas sílabas na minha janela. experimento de escutar as águas, ruído branco, líquida saudade escorrendo por entre as folhas das árvores, ensaio de beijo a revolver a terra, perto da calçada, onde a lata de refrigerante esquecida, inconscientemente se banha. chuva lá fora, rio

cá de dentro, a revolver outras águas, outro lugar. Um homem sentado e eu ajoelhada a lavar-lhe os pés.

Porque essa lembrança guardada como relíquia antiga, porque agora essa senssação de ter entre as mãos de menina os pés rugosos e sujos de terra, donde os

meus dedos hábeis extraíam o texto do dia, ranhuras, tocos de graveto ressequido, tensão boa de estar amoldado a terra, abrindo covas, semeando, aplainando

o lugar donde viria o broto?

Era a hora morna da tarde em que os pássaros haviam se calado. A hora morna em que no rosto do meu pai, o prazer assistia ao seu siLêncio calmo. Só havia

a fala dos seus pés, a me contar do dia, a me dizer do trabalho duro. A fala dos seus pés, sob a música da água na concha das minhas mãos de criança, decifração

de uma ternura que não se metamorfoseava em frases decoradas, em gestos medidos; decifração de uma ternura que se engendrava em cada gesto nascido do agora,

do momento de estarmos ali, sob a cúpula da cena sagrada em que de joelhos, eu lavava os pés do meu pai.

E a chuva calma que brota agora dos meus olhos, é um canto de agradecimento por todas aquelas tardes em que eu e o meu pai, sem o saber, nos entregamos

a essa ternura composta de terra e água, mãos e pés, e umprofundo respeito pela vida!

 

Jantar a Doiis

(Este post foi publicado originalmente em www.joanabelarmino.zip.net)

 

 

Sentada, sozinha, na minha sala de jantar, comia satisfeita minhas adoráveis rodelas de inhame com peito de frango assado, quando de repente ele veio sem aviso, vestido de distância,e como quem pega ao acaso um pedaço de pão, recomeçou aquela nossa conversa de tanto tempo, conversa banal, na mesa da sala da sua casa, as frases agora adoçadas por uma saudade que não havia antes.

Meu pai adorava peito de frango assado.   Na partilha da galinha de domingo, num gesto mecânico, minha mãe separava a parte dele e ali naquela mesa cheia de gente ávida por molho pardo, cumpria-se o rito sagrado de honra ao senhor do trabalho, a saborear seu naco de carne e a nos contar suas histórias de terras.

Silenciosa, minha mãe deslindava com maestria o dicionário das nossas preferências. Para mim, o fígado, a entre-coxa, e, se possível, uma asinha. A moela era de Manuel e, para todos, a silabaria comum da rega do molho pardo.

No meu prato raso de porcelana clara, cortei e comi devagar as três fatias de peito de frango assado,  rindo com meu pai, escutando o som da sua conversa, sentindo o brilho do seu sorriso, tudo como música de fundo para o meu jantar a dois,  na minha mesa de quatro lugares.

Naqueles poucos minutos quentes, cheios de sons encantados, desenrolamos a nossa vida, desenredamos a cortina das lembranças, pejadas de um vago esquecimento.

Filhos indo embora, filhos casando, a casa ficando maior. E sempre a se cumprir, aquela promessa do peito de frango no almoço de domingo.

Até que um dia… Regamos nossas lágrimas com canja de galinha, numa mesa tão comprida, tão despovoada das suas facas de trinchar.

Fiquei junto do meu pai, e naquela hora não dissemos nada, mas cada um, do seu jeito, acalentou o coração do outro.

Mas eu sabia, meu pai agora tecia já o lençol comprido da sua solidão,  e sequer se importava com a inutilidade do seu tempo, a recolher do mundo todas as suas histórias.

Limpei a boca com o guardanapo de papel, e quase que senti, aquele peteleco divertido que ele me dava na orelha. Sorriu para mim, seu riso orgulhoso de menino antigo e voltou para o seu lugar de bruma, onde sei que é feliz.

Mundo Conectado

A física quântica falou em universos paralelos, mas eles estão aqui mesmo. Desenrolam-se por entre as têias cibernéticas, há tanto rumor, tanta fotografia, indicialidades de uma cibervida conectada. A teoria Geral dos sistemas falou em ˜estados possíveis. Na estrada cibernética, todos os estados são possíveis, confirmam-se, tematizam o mundo editado dos mortais, que persistem, mesmo nos perfis de gente morta. Criamos o não-tempo, ou o tempo da ciberflanagem, estamos vivos, sentados no sofá, inventando sinapses e conexões, enquanto nossos músculos enferrujam. Vida de carbono, louca por inventar uma nova carcaça colorida, sintética, dinâmica, nade de músculos, de adiposidades, somente conexões.