Ela tinha brincadeiras tão estranhas, que pareciam vir de uma infância muito antiga, pareciam escorregar de um tempo onde não havia religião, nem dogmas, nem anteparo de palavras duras.
Como se, de uma matéria entre líquida e plástica, ela fosse inventando coisas que eu nunca tinha visto.
Um dia, me lembro, estávamos brincando perto do lago. Eu sempre lhe perguntava, o que há do outro lado? Ela sorria, fazia um jeito de boca, do tipo puffff e coisas estranhas aconteciam.
Naquele dia, quando lhe perguntei sobre o outro lado, ela fez puffffff com a boca, e, de repente, da neblina que eu via de longe, surgiram duas pessoas de mãos dadas, sorrindo para nós, um riso fugidio, tão cortante como uma ponta de faca.
- Eles são o bem e o mal, disse-me ela com sua voz de neve adormecida.
- Olhei para as duas figuras enfumaçadas de frio, a girarem por sobre o barranco, a se arrepelarem, a sorrirem de modo ao mesmo tempo tão estreptoso e frio.
- – O bem e o mal sempre foram amigos. Sempre andaram juntos. Nunca, nunca brigaram, prosseguiu ela.
- – O bem e o mal são uma e a mesma criatura. Capazes de inventar o doce e o azedo, o áspero e o liso, o mistério e a certeza, a palidez e o corado das faces, a palavra e o silêncio, a vida e a morte.
- Eu estava de olhos arregalados, ela fez puffff no meu rosto perplexo. Acordei e lhe disse:
- – como você sabe de tudo isso?
- Ela então me pegou da mão e falou:
- – Por que eu tenho um poço. Um poço profundo onde vou buscar essas coisas.
E girou comigo por entre as plantas rasteiras que circundavam o lago, e me preciptou para dentro de um longo poço escuro, e me deixou lá, petrificada de frio e de medo.