Do Meu Diário Íntimo para Gabi

Você não sabe, mas foi como no meu sonho. Você segurando minha mão, você me conduzindo pela porta leste, seus olhos maravilhados com o brilho das velas, sua voz a espalhar seus pequenos diamantes entre os elementais, cada um disputando aqueles farelos deliciosos de sílabas,grandes espirais do seu riso limpo e cristalino, que você mandou para a lua nova,sem sequer suspeitar da rapinagem que o vento fazia, dos bocados de riso seu que caíam das bordas do espaço.

Fizemos nossa pequena jornada com cuidado, seus pés à frente dos meus, pousando delicadamente no capim cidreira, nos pequenos montes de terra. Desviamos o cume do velho formigueiro e, um passo atrás do seu passo, meu dedão esquerdo foi novamente vítima das formigas guardiãs, desconfiadas do meu esmalte quase sem cor.

Nossa marcha, a desenhar na terra do quintal a trama da nossa dança íntima. E, ao modo dos pequenos tambores, a contar para a terra o segredo do nosso amor.

Você não sabe, mas foi como no meu sonho. Nós duas plantadas junto da pedra da nossa escolha, a suavidade do seu abraço a tecer para mim toda a circularidade da sua ternura, tão íntegra, tão doce, tão plena.

Naquele instante, escutei todas as portas de dentro a se destrancarem, e deixei-me inundar pela tepidez do calor da sua pele, pelo pulsar suave do seu coração,e juro, briguei feio com o vento para guardar só pra mim, o cheiro bom do seu cabelo.

Naquele instante, por arte da chama daquela vela amarela que você escolheu para si, vi toda a delicadeza dos elos que nos ligam.E naquele lugar só nosso, sem relógios nem agendas, com a lua nova a preparar sua carta de intenções de luz, refizemos nossa jura de eterno querer bem,que se renovará, a cada lua nova.

E você sabe, porque não deve haver segredos entre nós, vou lhe contar uma coisa que eu descobri, antes das minhas portas se fecharem para o sono da noite. A lua nova tem inveja de nós!E escuto você, já de dentro do sonho, esfarelando meu segredo com suas palavras sábias inundadas de riso: E nós, você e eu, temos inveja da lua cheia!

Conselhinhos Light

Hoje ele fica comigo, amanhã com você. Não foi sempre assim nos países árabes? Agora importamos comportamentos, tênis, mulheres, homens, histórias, formas de amor.

O meu amor é assim, maroto, descomprometido, solidário, ou seria socialista? Leve como algodão doce. Mandei agorinha um sms, ele nem respondeu. Se calhar, está com a Moura. Ou seria a Moira?

Mais tarde encapsula tudo o que não quer me dizer num pps, envia com cópia oculta,pendura um recado no meu wahtsapp, de que espera me ver no bar Antonius.

Não faça drama. Vá ao dentista. Peça pra ele reparar sua ponte. Que tal a massagem afro do Emerson, no cabelereiro?

Eu já sei onde eu vou. Surfar na net. Amor higiênico, limpo de humores. Brincar de adolescente punk,dizer aos velhos amores dos outros, tudo o que eu já disse a ele.

Não faça drama, a não ser que haja um papel pra você na novela das seis, ou então uma ponta no Sem limites de 2020.Aprenda com o filósofo da ocasião, que quando ele estiver com você, estará só com você.Só com você  e ponto. O que é que você quer mais?

Execute o plano B. Aquele que você leu no pps dele.Seja leve e suave como as folhas de verão. Encolha sua barriguinha de chopp junto com aquela felicidade que previa dois numa cama só.Seja soft, ecologicamente correta. Faça como os ingleses. Corra dos perigos de dormir acompanhada nesses tempos de gripe suína. Invente um mantra,um visual novo para o seu cabelo rebelde, um jeito diferente de erguer as sombrancelhas     Vá viver amor e sexo com Fernanda Lima e entenda porque os homens peludinhos estão desaparecendo.

 

Minha Despedida de Saramago

Que silêncio é este que habita à  casa de Pilar? E do lado de fora, que falas são estas do mar d’Espanha,ressaibradas por essa vaga de tristeza?

Somente os milhares de livros, nas suas estantes, ruminam a inércia e o peso das palavras, inventariam fórmulas, arqueiam-se sob o volume de todos os nomes dos muitos romances inacabados, pelas intermitências da vida.

No frio da madrugada, nenhuma nesga de tempo para vigiar o seu memorial do convento, grande obra lavrada pela pá, cimentada pela palavra. Não será na jangada de pedra que ele se libertará da sua quilha de respirar, tampouco haverá tempo e vontade para uma última inspeção à caverna, nenhum vislumbre de desespero por não ter podido assentar um ponto final no seu ensaio sobre a cegueira do mundo.

Tão longe já, uma houtra madrugada brumosa, quando o almoáden cego ergueu-se até a montanha, acordou os seus para a oração, riscando na pedra as primeiras sílabas da história do cerco de Lisboa, e, sem o saber, anunciando de antemão,antigas e futuras  histórias de tantos outros cercos, tantas prisões, inquisições, tantos caminhos alinhavados, como se adivinhasse já, as múltiplas pontas do novelo azul de Maria de Guavaíra.

Não será de blimunda, a última lembrança que lhe acudirá,nessa breve agonia que já lhe toma de assalto o fôlego, os sonhos, o vago desejo de acordar e conferir no antigo relógio, a hora exata do princípio do seu amor.  Entre um e outro combate de células fatigadas, incofmormadas, lembra-se de uma das suas mais belas narrativas de morte,e sabe que morrer é isso, o esforço supremo da vida por querer reter aquele que aqui já não quer estar.

Não vai conferir tampouco a escrita do seu Evangelho, espalhada aqui e além, por todas as suasnarrativas, onde falaram com a mesma veemência, as formigas, os camponeses, os poetas, as mulheres à dias, os elefantes, as invernias a engrossarem a fala do Tejo.

Levantado do chão, permite-se uma vaga saudade do seu cobertor, da voz ciciada de Pilar, do ritual de final de tarde, onde se deixava ficar pacientemente a alimentar e conversar com seus animais.

E quando Joana Carda riscar o chão com a sua vara de tordilho, quando os cães de Cerbère começarem a latir, o mar d”Espanha, encapelado, bramirá sua saudade daqueles olhos inquiridores, daquelas mãos incansáveis na sua faina de cinzelar a força e a riqueza das suas idéias.

“A Fórmula de Deus”

Acabei de ler ontem, “A Fórmula de Deus, de José Rodrigues dos Santos. Como havia um mail de contato, decidi apresentar ao autor minhas primeiras impressões dessa viagem literária. Surpreendida e grata, reproduzo aqui minha carta e a réplica do próprio José Rodrigues.

 

Caro José rodrigues.

Em princípio queria agradecer-lhe pelo vigoroso romance. Acho que sua escritura foi sobretudo um ato de coragem. Traduzir teorias científicas de alta complexidade

em uma narrativa ficcional poderia ter dado errado, e não deu. Preservou-se a qualidade da teoria, ratificou-se a importância da sua divulgação, sem entretanto

perder-se a qualidade do romance em si.

tenho lido muito sobre todas essas questões, limitando-me entretanto às traduções em português, das obras de Michio Kaku, Pau Davies e outros teóricos desta

linha. O seu romance despertou em mim um misto de sensações diversas. Descrevo-as aqui livremente, para não perder a “primeiridade” das impressões, se

é que isto ainda seja possível.

Fiquei com um amargor na boca, uma espécie de sensação de que de fato caminhamos inexoravelmente rumo à uma evolução, a um fim teleológico. E porque me

amarga a boca? Porque pressinto que por agora, a vida é um instrumento desse caminho. Ou seja, nossa geração, e as gerações mais próximas num futuro, provavelmente

são instrumentos dessa viagem cíclica, mas não conheceremos este estágio final, sequer conheceremos estádios diversos precedentes.

Como se ocupássemos nosso ponto determinado nesse trem cósmico, nosso ponto determinado e imprescindível para que a aventura da criação da inteligência

não malogre. Mas com esta consciência transitória que agora temos, ínfimo suspiro da inteligência maior, não provaremos da aventura final. O que me diz?

Por outro lado, experimento um sentimento de quase regozijo por fazer parte disso, dessa aventura cósmica, ainda que o meu lugar pareça ínfimo. Não é contraditório?

 

acabada a leitura, senti vontade de descer do sétimo andar do meu prédio e tocar a terra, essa terra que tanto amo, experimentar em minhas próprias mãos,

suas fibras, sua tecedura de átomos. Acariciei os meus braços, e sorri ante à idéia de ser eu um conglomerado dos mesmos átomos que participaram da criação

inicial.

Muitas perguntas ficam aqui encapsuladas, mas um vívido agradecimento por tudo o que escreveu.

Joana Belarmino

 

Cara Joana,

Muito obrigado pelo seu amável e-mail.

Ainda bem que gostou do romance. Não me parece que me tenha colocado qualquer pergunta, mas o que fez foram sobretudo reflexões. E, a não saber que venhamos

a descobrir alguma coisa que o contrarie (o que é bem natural), parece-me que as suas reflexões reflectem exactamente o pouco que a ciência sabe sobre

o sentido da vida.

Um abraço do

José Rodrigues dos Santos

A Fórmula de Deus, Editora Gradiva, 2006.

“O Sétimo Selo”

Saí da leitura de “O Sétimo Selo”, último romance de José rodrigues dos Santos, munida com duas certezas: O escritor de “A Fórmula de Deus”,  tem um longo e bem sucedido caminho de criatividade a percorrer, situando-se entre aqueles escritores que foram aguilhoados pela pontada do inconformismo,  da denúncia, da pesquisa e da perquirição.

A segunda certeza, eu a partilho com o próprio José rodrigues dos Santos. O futuro da humanidade, ou, como eu gosto de dizer aos meus alunos de jornalismo, o futuro dos seres de carbono será sombrio.

“O Sétimo Selo” exibe o meticuloso trabalho do jornalista José Rodrigues dos Santos. O traço do escritor é leve, muitas vezes quase coloquial, repetindo-se aqui o exercício de “A Fórmula de Deus”, onde o autor traz para a linguagem comum, os grandes dilemas da ciência, das religiões, do esoterismo e das origens da vida.

Nos reencontramos com Tomás Noronha, que era também o personagem principal de “A Fórmula de Deus”, que na sua argúcia de criptoanalista, desvenda logo uma mensagem codificada, e, sem o saber, coloca os gangsters das indústrias petrolíferas no encalço dos cientistas que trabalham na busca da descoberta de uma fonte de energia alternativa que venha substituir o ouro negro.

José Rodrigues não perde tempo com os detalhes do trabalho criptoanalítico. De pronto, envolve o leitor nas intrincadas malhas da indústria petrolífera mundial, mostrando que, seja pela via do ganancioso capitalismo neoliberal, seja pela via das políticas desenvolvimentistas dos vários países do mundo, nosso futuro está engessado pelo sustentáculo desse modelo energético de sustentação da economia, ou seja, o uso do petróleo como energia fundamental.

Alimentado por laboriosa pesquisa documental, e com leves pinceladas de uma escrita exata, substantiva, o autor nos mostra a verdade que a grande imprensa sequer ousa tocar. Na maioria dos países produtores/exportadores de petróleo, a produção alcançou um pico, o que significa dizer que caminha inexoravelmente para o esgotamento.

O trabalho de perquirição de José Rodrigues vai mais longe. Nos apresenta o dilema para o qual nos empurra o aquecimento global, claramente forjado pela ação humana. E crava diante de nós, perguntas simples, que só têm merecido a indiferença da política e da economia mundial, e mesmo a indiferença da responsabilidade pessoal de cada um, obscurecida pela busca do consumo e do conforto fácil. Quem vai pagar a conta do aquecimento global? Para onde nos empurrará o planeta, em seu quente desequilíbrio?

O tema da velhice humana, é mais uma linha aguda e sombria no romance de José Rodrigues. Um ícone do próprio envelhecimento da humanidade, presa num gargalo  irracional, a cultivar seus dogmas, a endeusar seus carros de luxo, indiferente ao safanão, à parada breve, numa esquina qualquer de um mundo que tende a descambar, irremediavelmente.

O Sétimo Selo

José Rodrigues dos Santos

Gradiva, 2007.

Cronica para o Rio amazonas

 

 

Que queres que te diga? Fomos escutar o rio,  aquele caudal discursivo de milhares de quilômetros, fala líquida e universal, ora calma, ora encapelada, a bramir sua força, a desdobrar sua multiplicidade de cheiros, cheiros inventados entre o limo e a terra, cheiros de vida e de morte, entrecruzadas.

Depois, no Forte de São José, que deveria se chamar Forte dos Negros, tocamos na pedra desbastada enquanto no meu íntimo, encenou-se novamente o tear da morte, vida despedaçando-se naquelas altitudes, quando tudo ainda era força de mão de obra, suor e sangue.

E ali, perto da floresta que não pudemos ir visitar, teci no meu coração, um refúgio de floresta outra,  onde houvesse grama verde e cheirosa, e onde o rio ainda pudesse entoar para mim, uma canção de ninar.

Crônica para meu Pai

Venha me ditar a crônica que eu não sei escrever, porque todas as palavras que tenho são pesos mortos para a minha saudade.

Venha sentar-se comigo na  longa mesa de madeira da sala de jantar, a velha bacia de zinco entre nós, pesada das vagens de feijão verde, que iremos debulhando devagar, enquanto você conta seus causos, parando de vez em quando para beber um café da sua térmica azul, recomeçando aquela antiga conversa de vacas bravas e cercas grandes nas fazendas alheias, mesmo enquanto prepara e acende o seu cigarro de fumo.

Debulhado o feijão, não se importe com as rusgas da minha mãe, porque desde que me entendi por gente, foi sempre assim entre vocês. Desamarre a linha do tempo. Vasculhemos juntos no velho baú do quarto da minha mãe, espere enquanto vou  vestir aquele velho macaquito de listras.

Empreste-me sua mão, vamos ao boteco de dona Madalena, porque hoje ela cismou que quer fazer um bolo, e a farinha de trigo que tem em casa não vai dar.

Olhe como a rua ficou bonita lavada da chuva de ontem.

Você não sente o cheiro de antigos trilhos de bonde? É sempre assim, a chuva da noite exumando cheiros de antigamente, como você, cavolcando em seu alforje as históricas lendas do seu tempo de rapaz.

Sim, já tinha me contado sobre a vez em que apanhou uma surra danada do seu pai, intrigas da sua madrasta, só porque furtou uma rapadura da dispensa. Foi dessa vez que você fugiu de casa?

Falando da chuva, olhe ela que vem com vontade, espantando a pelada dos meninos, alisando nossos cabelos, o seu, cheio e curto, o meu, abaixo do ombro. Hoje não vamos correr. Aproveitaremos os salpicos da água, enquanto você me conta dos violeiros, das noitadas alegres à beira do fogo, dos seus olhares de boi manso para as meninas do lugar.

Olhe como a casa está tomada pelo cheiro bom do almoço de domingo. Você não vê como a longa mesa de madeira, agora limpa das cascas do feijão debulhado, resplandecente em sua grossa toalha branca espera por nós?

Depois lhe conto sobre um pensamento tolo que tenho nessa hora em que a minha mãe serve a galinha do almoço de domingo.

Um pensamento tolo de que essa grossa mesa somente deixou de ser árvore para viver esse momento em que os talheres trabalham, velho exercício de limpar os pratos, oração comum em que as nossas bocas rendem sua homenagem aos sabores inventados na cozinha da minha mãe, magia singular somente dela, criando em todos os domingos, um único dia branco, regado a molho pardo, crônica singular, feita somente dos gestos do seu tempo, crônica do seu amor de mãe pela sua família grande.

Venha se sentar comigo no sofá da sala, faça pouco caso desses desenhos animados da televisão,  empreste-me a longa colcha dos retalhos das suas histórias, para o meu sono de depois do almoço de domingo.

Os Gestos da Minha Mãe

As vezes, no meio da manhã, minha mãe lavava os cabelos e depois ia secá-los ao sol. Ali por perto, eu ficava observando o ir e vir do pente grande naqueles cabelos, e, em pensamento, tocava naqueles fios lisos e claros, percorria com dedos da minha imaginação, a onda suave a escorrer cintura abaixo, e me espantava por aquela mulher miúda, mais para gordinha, ter cabelos tão compridos.

Era somente naqueles curtos momentos de sol e de pente que o cabelo dela respirava. Depois de haver secado, ela o prendia num coque alto, e recomeçava sua lida, a preparar a comida para sua família grande, uma família que nem cabia toda na mesa do almoço.

Da onde viria toda a força daquela mulher? Minha mãe era uma mulher estranha. Sorria poucas vezes, mas, quando o fazia, a sua risada inundava a casa inteira.  Nunca disperdiçava nada. Era justa na partilha dos alimentos, assim como na distribuição das broncas.  Na partilha do amor, minha mãe era exata. Os abraços, somente nos momentos de separação, quando queria que levássemos na nossa bagagem interior, o calor fugaz dos seus braços.

Os gestos da minha mãe, era preciso saber apreciá-los por dentro. Nos gestos da minha mãe, a ternura, o carinho, estavam escondidos como jóias raras, que ficavam ali zunindo suavemente, brilhando sem estardalhaço. Como naquele dia em que deixei a minha casa e fui viver a liberdade atropelada e cheia de medo dos meus 25 anos.

Naquela manhã, o cabelo preso, lágrimas a aquecerem seus olhos, ela me disse: “eu não tenho nada pra te dar”, e me entregou uma das suas conchas de alumínio, com que tantas vezes havia mexido o nosso feijão. A concha da minha mãe ainda está comigo. Reproduz em minha casa, a mesma função de quando auxiliava na faina da mão da minha mãe. Você me deu tanta coisa mãe. Foi escondendo seus presentes no mais íntimo de mim, e sempre que penso em você, descubro uma coisa nova que você me deu.

Mas hoje mãe, se me fosse dado tecer no tempo uma ruga, hoje se me fosse dada a chance de recriar um lugar, eu inventaria de novo uma manhã de sexta-feira, plena de sol, e ainda que você brigasse, eu mergulharia meu rosto de menina na onda dos seus cabelos claros.

 

O Natal de Gabi

Gabi, minha neta de nove anos teve um natal tranquilo. Ganhou seus presentes, tocou violino para a família reunida, executando com maestria o clássico “Hoje a Noite é Bela”.

No domingo, 22 de dezembro, conversando comigo, Gabi confessou que somente uma coisa iria faltar no seu natal: Não haveria neve.

Pensamos sobre o assunto e começamos a sonhar juntas. “Só se o mundo desse um giro e a neve da Europa viesse pra cá”, brinquei com ela.

Conversa daqui, conversa dali, começamos a inventar uma estória.

– Quem poderia nos ajudar a girar o mundo?

Gabio olhou pro céu e logo tivemos a ideia de pedir ajuda às nuvens.

Chamamos nuvem-galinha, nuvem-golfinho-com a cauda torta, nuvem-papagaio, nuvem-foca, nuvem-boca de jacaré, nuvem-porco, nuvem-cabeça de cavalo o e explicamos a todas que queríamos neve no natal de Gabi.

As nuvens tremeram, giraram, fugiram. E, naquela corrida desabalada, deixaram uma mensagem para nós: “Somente Nimbus poderia nos ajudar”.

– Nimbus, quem é Ninbus? Perguntei a Gabi.

– é a grande nuvem toda de água, explicou ela, contando que aprendeu isso nos desenhos animados sobre escoteiros.

E mesmo naquele momento, Gabio avistou Nimbus, a grande nuvem cheia de água que faz chover.

Contamos a Nimbus o nosso dilema, massa grande nuvem, pesada como estava, não entendeu direito aquele estranho pedido.

Gabi explicou novamente, olho fito no céu, mirando a grande e gorda Nimbus: – Se não der pra girar o mundo todo, poderia girar somente a parte em que fica nosso prédio. A neve viria pra cá e toda a nossa rua ficaria encantada, e todo mundo sairia de casa, e viria sentir a neve, brincar com a neve…

a grande nuvem pensou, pensou, por fim  salpicou a grama com pequenas gotas das suas sílabas líquidas: “No natal, tudo pode acontecer, inclusive neve no verão”.

Veio a noite de natal, e Gabi, completamente esquecida da sua neve, foi abrindo seus presentes, um por um: Um capacete novo para suas corridas de bicicleta, uma coleção de enfeites de cabelo, um vestido todo florido, livros infantis…

E a neve? Somente eu ainda pensava na nossa deliciosa conversa com as nuvens, somente eu ainda esperava pela vaga promessa de Nimbus, de que o mundo girasse, de que a neve da Europa fizesse plantão na fachada do nosso prédio, espalhasse sua brancura por nossa grama, batucasse no asfalto, sua alegra canção de natal.

Intimamente abri a porta, desci as escadas, pé ante pé, imaginei um asfalto coberto do tapete branco de neve inventei bonecos e bonecos de neve, e depois fundi todos eles num alegre e barrigudo papai Noel.