Por que não te Calas, Asha Mirje?

Hoje eu venho falar sobre sexo com você, garota 5.0. E venho indignada, e venho disposta a abrir as comportas do meu incômodo, desarrolhar todas as perguntas que precisam ser feitas.

Um dia um amigo me perguntou como eu definia uma relação sexual. Como um ato de amor, eu lhe disse. Um ato da mais íntima entrega, um ato de respeito, de ousadia, de carinho, de gozo. Disse mais coisas a esse meu amigo. Disse que todo mundo deveria ter direito a esse tipo de ato sexual.

É óbvio que eu falava para esse amigo, daqui do meu mundo protegido, limpo, cheio de arrazoados bem estruturados.

Para quantas pessoas no mundo o ato sexual não passa de um ato de violência? Quantas mulheres, mesmo agora, enquanto escrevo esse post, podem estar sendo submetidas à força, seviciadas, estupradas, à mercê da brutalidade de homens?

O mundo perdeu as estribeiras. Na índia os estupros são coletivos. Seis, oito, dez homens penetram uma mesma mulher, dentro de trens, em lugares isolados. Oito, dez homens penetram uma mulher e no final ainda vem uma líder política dizer no parlamento que ela foi a culpada!

Asha Mirje, é esse o nome dela. Foi ao parlamento indiano para dizer, na última terça-feira, que com suas roupas, suas manias de andarem sozinhas à noite, as mulheres convidam ao estupro.

Se eu não estivesse escrevendo essas linhas estaria gritando. Gritando de raiva, de indignação.

Quando será que o estado vai proteger suas mulheres? Quando será que o desequilíbrio de certos homens deixará de transformar seus pênis em armas? Quando será que as mulheres poderão ter mesmo direitos iguais, de vestirem-se como queiram, de andarem livres à horas tardias, sem que isso sirva de passaporte ao molestamento, ao estupro, à violência?

Asha Mirje, deixe o parlamento. Guarde seu ativismo machista. Arregace a saia, a burca ou o que lá use e defenda as mulheres do mundo dessa ignomínia que mancha de sangue e de horror as suas vidas. Asha Mirje, Sabe quantas meninas, jovens, mulheres idosas foram estupradas esse ano no mundo? Se não puder gritar contra essa hediondez, Asha Mirje,, fique calada!

Um Longo Grito por Justiça

 

 

Tudo na vida da gente envolve um “e se”. Digo isso porque ainda estou impactada pela cobertura de um ano da tragédia da boate Kiss, na cidade de Santa Maria. Impactada pela força da vigília realizada na noite do domingo para a segunda-feira, impactada pelo tamanho da dor das famílias dos 245 mortos.

Cada uma daquelas famílias, provavelmente, em algum momento, do fundo da sua dor, pensou no “e se…” “E se a minha filha não tivesse ido”? “E se o meu filho tivesse ficado em casa”?

Como tempestade de verão, a dor daqui chama outras dores, acorda outras feridas. Mães argentinas   vêm juntar-se às mães brasileiras, para alguma soma impossível dos seus dias de perda.

É forte a imagem da cidade acordada, em plena madrugada, o chamado das sirenes ecoando por parques e praças, como um pedido, um alerta, um grito para o não esquecimento.

É grandiosa essa imagem de uma cidade assombrada pelo tamanho da sua dor, 245 vidas ceifadas assim, ao som do vanerão, fumaça e perfume unindo-se numa química macabra de morte.

E se essa fosse somente mais uma noite normal? E se não tivesse havido a tragédia? E se, nessa esquina impossível, entre o antes e o acontecimento, e se tudo isso pudesse ter sido evitado?

Os acidentes, o que são eles senão o resultado de uma falha na maquinaria, um gesto incidental em alguma zona de perigo, uma escolha infeliz, a  desaguar sobre nós, toda a carga da sua fatalidade?

A tragédia da boate Kiss reuniu num só lugar, um coquetel mortal, tudo porque uma pergunta crucial não foi feita: E se a segurança fosse um item vital dentro da boate? Pergunta crucial, a escavar outras tantas perguntas fundamentais: E se houvesse zelo para com a vida? E se o lucro conciliasse responsabilidade social e segurança aos seus cálculos?

Essa lista não é tão grande assim, mas a força da ausência desses itens vitais, zelo pelo humano, responsabilidade social, segurança, fiscalização, armaram a bomba, criaram o desfalque, cimentaram a cidade com larvas de uma tristeza sem tréguas.

O vanerão, em santa Maria, não terá mais o tom despreocupado e inocente da alegria. Centenas de famílias clamarão pela justiça, compreendendo agora o real significado dessa palavra, com seus dentes de angústia, suas unhas compridas de desespero.

Santa Maria, minha crônica, em alguma medida, junta-se a esses gestos, a esses braços vazios, a esse longo grito por justiça.

A Oração de ana Maria

Na manhã de hoje,  enquanto me aprontava para iniciar o dia, escutei na tv, a apresentadora do “Mais Você” fazendo uma oração em defesa do Rio de Janeiro.

Não me recordo qual era o santo que ela invocava. Seria Santo Expedito? O certo é que pedia proteção para a cidade maravilhosa. Com sua voz monocórdia, pedia ao santo que livrasse o Rio de janeiro dos maus elementos, que estendesse um manto de paz sobre a cidade, que defendesse as famílias, as pessoas de bem… oração que era aparteada por Louro José, fazendo também o seu coro de fé.

Estava ali uma oração midiatizada da família brasileira de classe média alta, aquele tipo de família que acostumou-se a viver do lado de lá dos muros da cidade real, cidade suada, apertada nos coletivos, nos metrôs, cidade apertada entre as ruas estreitas, fazendo pesquisa de preço, contando moedas, apanhando no meio da rua santinhos e orações, que vão para dentro da bolsa surrada da mulher idosa, acompanhados por uma pontada de fé e de desesperança, tudo ao mesmo tempo agora.

A oração de ?Ana Maria, com toda certeza, chegara à sua caixa de entrada a mando de alguém muito amigo, uma corrente de fé deflagrada por mulheres piedosas, todas elas perfumadas, malhadas, o cheiro do medo a espalhar-se por seus corações, que não conhecem o que é viver em casas metade papelão, metade barro, ou mesmo em apartamentos de 40 metros quadrados, oito, dez pessoas tentando acomodar a tv grande na sala minúscula, para poderem ver o desfile astronômico e proibitivo dos produtos da sociedade de consumo.

Os “rolezinhos” de fato são a última invenção dos jovens para assustar os ambientes de classe média alta por onde circulam as famílias de bem. Jovens cheios de energia, que desde os tempos mais remotos “estorvaram” as vidas dos mais velhos, e que, nas culturas antigas, tinham que produzir grandes façanhas, na caça, na guerra, nas olimpíadas, para tornarem-se reconhecidos pelo clã, para receberem o selo de que haviam se tornado adultos.

Nos tempos que correm, nem caça ne pesca, somente a guerra surda, inspirada pela desigualdade, pela concentração da riqueza, pela transformação dos espaços reais em espaços fechados, hiperrefrigerados, ninhos para acomodar as mercadorias da sociedade de consumo, esta máquina produtiva que não para nunc de desovar seus produtos, a preços cada veiz mais proibitivos, para as famílias de bem das cidades brasileiras.

“Maus elementos”? Fiquei pensando na alcunha proferida por Ana Maria para os inventores dos “rolezinhos”, e, intimamente, disse ao santo que olhasse também para outros maus elementos, que não fazem “rolezinhos” nos shoppings, não roubam tênis de marca nem depredam agências bancárias. Disse ao santo que se ele porventura quisesse mesmo ajudar na faxina, olhasse para um outro tipo de maus elementos vestidos de terno e gravata, os que cuidam das roldanas econômicas e políticas da máquina social, os que ano a ano, ao longo dos séculos, equilibram o pêndulo da desigualdade a soldo da corrupção, da narrativa política de defesa do estado de bem-estar, das orações piedosas vindas por corrente, pedindo proteção para as “famílias de bem”.

Deus sabe Braille?

 

 

Ontem, enquanto revíamos fotos de Paris, minha irmã Cida me perguntou do que eu mais havia gostado na França.

– De tudo, eu disse. Dos passeios, do congresso, das geladas noites embaixo das cobertas ou no calor aconchegante dos restaurantes, do riso aberto do meu amigo Ibrahim, com sua túnica africana, até do bife chartier que não era bem um bife eu gostei.

Não contei pra minha irmã, daquele momento singular que agora vive em mim como uma das lembranças mais queridas da França. Momento ínfimo que se destacou dos outros, como uma centelha,e veio habitar o meu coração, como uma espécie de mantra, como um acalanto branco, música singular e plástica, que agora moldo ao meu bel prazer, reinventando todas as suas cifras.

Foi na tarde do dia sete de janeiro. Um pouco fatigadas do burburinho do salão principal do congresso, por volta das três da tarde, renunciamos ao elevador, e descemos as escadas, para nos depararmos, no terceiro andar da sede da Unesco, com enormes corredores habitados pelo silêncio.

Silêncio? De repente algo chamou minha atenção. Um som, um picotar, um tamborilar, como se alguém estivesse escrevendo em braille.

Guiei Mariana para o lugar de onde vinha o som, e, diante da vidraça, ficamos em silêncio, maravilhadas, escutando a neve a deslizar, pequenos flocos brancos a compor uma música líquida, irregular mas constante, pequenos flocos brancos a estralejarem suavemente, num ritmo aleatório, a minha inédita canção francesa.

Sei que nunca serei capaz de descrever o que senti. De dentro do frio, eu sentia calor. Sentia alegria. Alegria salpicada com algo profundo, porque pensei, naquele ínfimo momento, pensei na trilha dos milhões e milhões de anos, no frio, aengendrar a neve. Milhões e milhões de anos, e, num arranjo de minutos improváveis, eu ali, nariz colado naquela vidraça, a escutar a invenção do frio, feita em música de neve.

Quem sabe, noutro dia, eu tente inventar outra crônica, para dizer do meu encantamento, porque nessas trinta linhas, tenho certeza que não consegui.

Ou talvez eu deixe que cada um brinque com a música imaculada da neve, ao seu bel prazer,  compondo por dentro das estrias do frio, o calor desse dueto  irregular, ao mesmo tempo lúdico e solitário,  num imenso corredor silencioso e quase vazio.

Antes de Chegar

Deitada na minha cama, e pensam que durmo? Que descanso?

Deitada na minha cama, as cinco da tarde, quando a nesga de sol, oblíqua e terna amiga que me faz companhia por todos os dias do verão já deixou a quina da minha mesinha de cabeceira, deitada na minha cama, imagino-me em Paris, na mesa redonda do dia sete de janeiro.

Embrulhada no meu medo, embrulhada na minha emoção, embrulhada no meu casaco cinza, imagino-me a falar o que agora treino sozinha,  para uma platéia que não sei se estará atenta aos rebordos do meu sotaque nordestino, aos sotaques da minha emoção, por estar falando na língua de Luís Braille, na França de Luís Braille.

… C’est avec une immense joie que j’ai reçu la nouvelle de l’accueil de ma communication à ce congrès.

Repasso cada palavra, imprimo ritmo e velocidade à leitura. O que será de mim em Paris ?

Cada dia em que acordo, cada manhã em que a minha nesga de sol, oblíquo raio de luz sobre a quina da minha mesinha me dá bom dia, sinto aproximar-se a hora de cruzar o atlântico, de chegar à França, de recolher com a concha da minha mão, um pouco da terra da aldeia de Couprvay.

O galo da vizinha está a cantar, o bem-te-vi,  lá da sua árvore, ensaia sua própria recitação, e eu, um misto de alegria e medo, sinto já habitar esse não-lugar, entre a minha casa  e a europa.

Ousadia essa minha, de tocar com a mão, um naco da história desses duzentos anos. Ousadia essa minha de tocar com a mão, a terra onde seus pés de menino experimentaram um solo pontilhado de verduras, de pedrinhas, de grãos.

Ousadia essa minha, de preparar com minha própria voz, a fala francesa dessa minha emoção.

Quando 2 de janeiro chegar, terei que agradecer a tanta gente por essa façanha começada !

Mais um dia a dormir sob o solo do tempo. A lua dessa noite vem me visitar, suspensa do seu céu tatuado pela pontografia das estrelas.

No meu coração, o ritmo não é de samba. É de braille, Braille a batucar, todos os gestos da ousadia desse menino de Couprvay, impressos na minha alma, na ponta dos meus dedos,  na ponta da minha língua nordestina a treinar o francês.

Um Longo Dia Branco

 

3 de janeiro. Chegar e congelar, de frio e de apreensão. Aeroporto Charles de Gaule, 11 da manhã, três graus negativos, ninguém a nos esperar, desmentindo-se assim as informações recebidas por internete.

Silêncio dentro do táxi, corações batendo, de alegria, de receio, de frio. Rue Cambrone, Hotel Ibis, 45 euros, “merci beaucoup”, dissemos as duas em coro.

Recepção, a turma do oxente entaramelando francês do livrinho, “Como dizer tudo em francês”, ai que alívio! Quarto 262. Nada de mordomia, é arrastarmos malas nós mesmas. Fuso horário na cuca, banho rápido, roupa e mais roupa, bater perna e queixo também.

Isoladas de tudo. Nossas tomadas aqui precisam de “um’adaptateur”!  Nem net, nem rede nos celulares. Supermercado. Sanduíches deliciosos, suco de laranjas do Brasil! Despesa do dia: cem euros, precisamos maneirar.

 

4 de janeiro. As pessoas expectoram de forma abundante em Paris. Não soubemos disso pelos jornais. A notícia está nas calçadas, sempre fresquinha, até que a neve vem e recolhe tudo dentro da sua brancura.

Missa de homenagem na capela do Instituto dos Jovens Cegos de Paris. Tosses terríveis no eco da capela. Com personalidade, com ritmo. O “pai Nosso em francês, e nós caladas, escutando a oração.

Caminhar, aventurar-se pelo Mont-Parnasse. Meeio dia e os termômetros não saem dos três negativos.

Voltar pro hotel. Dor de cabeça francesa só passa com analgésico francês.

Catedral de Notre Dame. A noite é do organista cego Jean-Pierre Legay. Quantas vozes um órgão tem? Legay nos mostrou as mais pungentes, as mais complexas, as mais intensas, as mais suaves, as vozes múltiplas a desfiarem sonhos  a reverberar, na imensa catedral.

 

5 de janeiro. Quanta neve Mariana! Nossos pés a triturar aquela brancura, nossos corpos, debaixo da montanha de roupas, a tentar decifrar a corrida dos termômetros. Sete graus negativos agora, nove da manhã, enquanto caminhamos para a sede da Unesco. O Congresso vai começar de verdade.

Cinco continentes, 46 países, quase quinhentas pessoas a pensar em braille, a falar em braille.

E a neve também, batucando nas vidraças da sede da Unesco, um estranho texto em braille, texto branco, espalhando-se pelas calçadas, pelo asfalto, pelas bordas dos carros.

Caminhar pela neve, dependendo do calçado, lembra nossos pés sobre um imenso tabuleiro de goma para tapioca, esfareladiça, nossos tênis fazendo croach croach croach pelas ruas congeladas. Ou então a gente sente como se pisasse em areia granulosa, bruif bruif bruif do solado das nossas botas.

 

6 de janeiro. O dia é branco, Paris é linda dentro dos seus nove graus negativos. Fizemos amigos. Ibrahim, de Togo; Gérald, da fronteira francesa com a espanha; o simpático casal de holandeses e seu cão Fredrick;  Lynda, a moça de Hon Kong; a tailandesa com sua semi-burca;  o canadense surdo-cego que nos fez chorar e aplaudir por quase dez minutos, ele que nos ensinou o alfabeto das mãos, braille para que cegos e surdos falem entre si.

A noite é da torre, e da música da neve sob nossos pés.

 

7 de janeiro.  Braille! Braille! Os franceses amam aquele jovem franzino que inventou esses pontos de luz.

E minhas mãos a tremer sobre o texto em francês, minha língua a tropeçar nas palavras. Eu falei, falei e tremi.

 

8 de janeiro. Estou em Couprvay, dentro da casa de Luís. Meu coração se recolhe para dentro do silêncio, enquanto a guia fala, fala, fala!  Tento imaginar a casa do início do século XIX, abrindo suas comportas para o dia branco da aldeia. Como que escuto o som das ferramentas, na oficina subterrânea do celeiro. Não quero escutar o grito do menino, a azáfama, o interromper dos ferros.

Corremos para o jardim. Um jardim branco, pejado de neve. Escavo aquela brancura fria, aperto-a nas minhas mãos. A neve tem vida, personalidade. No breve atrito do calor da minha mão, a neve se reinventa. Penso num menino a sorrir, dono daquele jardim de brancura.

A guia nunca mais se cala. Meu coração reclama paz, reclama silêncio. Meu coração quer escutar o vento,  quer cerrar as cortinas do tempo; meu coração quer a paz, para o longo dia do menino de Couprvay.

 

 

 

 

 

“Le Temp Elastic”

Pensar no tempo a se estender, segundo a segundo, o tempo dos relógios, dos calendários, dos satélites; pensar no tempo universal, esse grande tapete elástico, e nós, a caminharmos sobre ele, a vivermos cada um a ação do seu tempo, isso me fascina, me faz reflexiva.

Segundo a segundo, a mais de um ano, me preparei para viver o dia de hoje. Um dia que começa como os outros, com seus pássaros, minha nesga de sol,  as casas que acordam,  o barulho dos cães, o mar, lá no fundo a espremer suas ondas.

E eu a espremer inutilmente essa minha escrita, incapaz de transpor a minha emoção para esse post, lugar de diálogo entre mim e os meus leitores queridos.

Pois vou dizer de novo o que já disse, tantas vezes, como se não acreditasse,  vou-me embora pra Paris, vou ver a casa onde, no dia 4 de janeiro de 1809, nasceu um menino franzino que viveu a saga do seu tempo para fazer luz e abrir as portas da cultura letrada a milhões de pessoas em todo o mundo.

Vou à escola onde ele estudou, onde num dia qualquer da sua curta vida, forjou a malha em relevo por onde transitam mãos de mulheres e homens cegos, num gesto único de tocar as palavras.

Vou caminhar pelas ruas, apossar-me do cheiro e dos ruídos da cidade luz, abocanhar suas ilhas de silêncio, e pensar, pensar, no poder que essa escrita pontográfica nos deu, poder que muitos ignoram, poder que outros desprezam, poder que nos alastra o espírito,  poder que nos permite, quase que acariciar, com o sobrevôo dos nossos dedos,   a beleza da poesia, a vida subterrânea da literatura, o progresso da ciência.

Vou visitar o Panteon, e quem sabe forje com a minha escrita braille, uma carta para Luís, uma espécie de prece, ou de poesia, não sei. Sobre o tapete do tempo, os pés plantados no solo do Panteon, que palavras me advirão, trêmulas e inúteis,   a tentarem articular a narrativa desse momento mágico, lugar entre dois tempos, e a vaga dos acontecimentos de dois séculos passados?

A Crônica do Destempo

Nos calendários, nas memórias, mais um ano que se acaba, com sua trilha sonora a tocar vorazmente nas máquinas registradoras, o concerto dos minutos, dos dias,

das horas, dos acidentes, dos negócios, dos abraços cheios de um misto de alegria e de nostálgica saudade.

Medo? Que palavra é essa que se mistura à receita do bolo, ao borbulhar do champanhe, ao toque das mãos, palma contra palma, levemente trêmulas?

Streptease singular esse em que o ano velho livra-se das horas, despejando seus últimos bocados na bacia do tempo, íntima entrega sem alarde,ano que se desfaz, sem pedidos de identidade, átomo contra átomo, massa revolvida, emaranhado de prótons e neutros a reinventar o agora.

Diante do espelho, eu queria gritar para este senhor implacável das nossas horas, a cavar no meu rosto, os caminhos sinuosos das minhas rugas.

Queria bradar feito louca um pedido extremo, para que se destravasse a ilusão, para que me fosse dada a alegria de conhecer o destempo, um alegre  destempero do mundo a misturar-se em presente e passado, minha palma contra a palma da minha mãe, minha cabeça sobre o ombro do meu pai, minha irmã a segurar, na sua bolsa predileta, o cadeado das horas, nossos rostos estufados de riso, nossas costas a desencostar-se das quinas do mundo, brisa de infância a sacudir as velhas árvores da memória, minhas filhas, a neta do meu sonho a destapar o caldeirão do futuro, nós todos emaranhados nesse desacontecer,abraçados, adormecidos no silêncio de um mundo limpo e virgem, cheirando a chuva, cheirando a marmeleiro, e o som da enxada do meu pai, exumando o cheiro bom do fundo da terra.

Um dia apenas começado, onde o implacável senhor do tempo tenha se esquecido de contar as horas, invenção de um agora onde a tragédia não se imiscua na nossa festa, onde a infância não seja vulnerável, onde o rio possa fluir, com cheiro de mato, de flor e de barro.

Invenção de futuro onde não haja anos caindo inertes na bacia do tempo, lugares de sonho, lugares onde já não habitem essas duas estacas, a da vida e a da morte a dividir o mar das coisas.

E resvalo para dentro de um sonho improvável, onde vejo minha mãe, a segurar nas mãos um universo bebê, a cortar com energia e doçura, uma espécie de cordão prateado que o prende ao destempo,  gotejante de vida. E no quintal cósmico, vejo meu pai a esforçar-se por arrancar duas pesadas estacas, a da vida e a da morte. E vejo vocês todos a inventar estrelas, como se quisessem tatuar o céu com uma espécie de braille que eu luto por decifrar.

E de repente vejo que Deus acordou. Esfrega os olhos e abre seus braços para o pobre universo faminto que a minha mãe acabou de lavar.

Ouço bater de portas, chuva fina lavando a cidade, e antes que o meu pai arranque a estaca da morte, estou de novo em casa,  e sinto todas as minhas células a recender, com essa saudade de vocês.

(Este post está publicado no Jornal A União, em minha coluna de hoje)