O braille nosso de cada dia: uma breve arqueologia da escrita em relevo
Eu só escrevo em braille. Faço parte de menos de um por cento da população humana do planeta que só escreve em braille.
E digo que escrever e ler em braille é como uma espécie de celebração. O braille foi inventado na segunda década do século XIX, por um menino de 15 anos, franzino, vulnerável, e que, aos três anos de idade, na oficina de couro do seu pai, perdeu a visão, quando brincava com uma sovela que resvalou para um dos seus olhos. O acidente acarretou uma inflamação que cresceu e fez com que Louis Braille ficasse totalmente cego.
A vida de Louis Braille se passou como que num acelerador. Aos 15 anos, no Instituto dos meninos cegos de Paris, inventou o braille. Aos pouco mais de 40 anos nos deixou, vítima de tuberculose, mas seu sistema de leitura e escrita em relevo ganhou o mundo, fez uma revolução inimaginável, abrindo as portas da cultura intelectual para milhões de pessoas cegas em todo o planeta.
Foi na velha reglete que Louis Braille aprimorou seu sistema de seis pontos, e é na reglete que uma criança cega faz, ainda hoje, seus primeiros aprendizados da escrita manuscrita em braille. Reglete e punção: Essas são as ferramentas fundamentais para o braille manuscrito. Curiosamente, o punção, que imprime os sulcos braille na sela da reglete, nos faz pensar na velha sovela que cegara os olhos do menino, mas a tragédia como que lhe entregou um rastilho de iluminação que conduziria todos os cegos do planeta ao gesto formidável de escrever e ler em braille.
Já falei em outras crônicas, da música predileta da minha infância. Uma música seca, repicada, uma espécie de tropel vibrante, produzido pelo som de várias regletes em ação, nas velhas carteiras do Instituto dos Cegos da Paraíba Adalgisa Cunha onde estudávamos nos anos 60. Enquanto as armas de grosso calibre atuavam nos porões da ditadura militar, nós fazíamos o trabalho de aprender sobre escrita e leitura braille. Nossos pequenos cérebros de meninos e meninas convocavam o nosso córtex cerebral visual para a tarefa intelectual de forjar nossa nova envergadura. Nascia ali, naquelas velhas carteiras, sob o repicar das regletes, uma nova coletividade: A dos cegosleitoresescritores dos pontos de Louis Braille.
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Eu sempre gosto de celebrar esses dois momentos primordiais: O momento de Louis Braille e o meu próprio momento, 146 anos depois.
Eu nunca mais seria aquela menina franzina, saída do sertão do Pajeú, em Pernambuco,, depois de haver entendido o sistema de Braille. Eu nunca mais ficaria num só lugar, mas palmilharia tantos e tantos mundos improváveis, mundos paralelos que eu tocava com meus próprios dedos, enquanto meu cérebro recolhia os rastros do conhecimento deixados pelo caminho da leitura braille.
Hoje eu sei que os pontos de Louis Braille foram e são a minha bússola. Posicionar as polpas dos meus dedos indicadores sobre essa conformação em relevo dirigiu-me ao centro do mundo intelectual, onde penso, escrevo, divulgo, e nunca me esqueço de que faço parte dessa coletividade que é a única do planeta que pode tocar as palavras para decifrá-las.
O braille de Louis hoje habita as fontes da Microsoft, e, elegantemente está disposto em tablets e linhas braille. Organizado numa linguagem binária, de associação e combinação em espaços preenchidos e espaços vazios, o sistema de Louis Braille já nasceu sob o signo da informática.
Então, de novo, foi como num acelerador. Nós vencemos Louis. Nosso braille brilha como a estrela de #Tycho Brae, entre os melhores dispositivos eletrônicos inventados na atualidade.
Mas sabe, tem uma piada pronta enganando os gestores míopes: a fábula de um óculos milagroso que vai curar a cegueira. Uma pessoa cega que cooperou com a música das regletes, Louis, não tem nada que a cure da sua alegria. Uma pessoa cega que tem acesso a linhas braille, Louis, não quer ser curada dessa alegria.. Uma pessoa cega que todos os dias vai buscar seu artefato de produção de braille, Louis, não deseja embarcar numa mentira de óculos que vai ler por ela.
Eu posso ler agora, de maneiras diversas. A cegueira, de fato, não está propriamente em mim, mas em gestores, governantes, educadores que não têm a menor ideia da grandiosidade do gesto primordial de Louis Braille.
Viva o Dia Nacional do Braille! Viva o século XXI, onde os seis pontos ainda são a única e formidável invenção para a leitura e escrita das pessoas cegas.